Desde 1888, quando a princesa Isabel assinou a chamada “Lei Áurea” (Lei n°3.353 de 1888), o dia treze de maio passou a ser lembrado no Brasil como o “Dia da Abolição da Escravatura”. Contudo, ao longo das últimas décadas, diversas organizações, movimentos, coletivos, ativistas e intelectuais ligados à luta por direitos da população negra brasileira, têm provocado (e proporcionado) uma verdadeira releitura da história nacional ao denunciar as contradições do suposto “fim da escravidão” no país.
Além de questionar as versões da história que apresentam a abolição como uma ação benevolente da filha de D. Pedro II e do Senado da época – e, consequentemente, omitem toda a luta abolicionista anterior protagonizada por nomes como Luís Gama, Maria Tomásia Figueira Lima, André Rebouças, Adelina, Dragão do Mar e Maria Firmina dos Reis –, pesquisadores e organizações sociais têm destacado que, conforme registros históricos, a abolição da escravidão não significou qualquer melhora na vida dos ex-escravizados em termos de inserção na sociedade da época. Ao não garantir direitos e condições de igualdade para a população negra, a abolição teria apenas transferido da condição de escravizados para a de marginalizados.
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A desmistificação do fim da escravidão no Brasil, porém, não aponta apenas para o passado, mas sobretudo para o presente e o futuro. Na última quinta-feira (12), por exemplo, um dia antes do aniversário de 134 anos da Lei Áurea, representantes de movimentos negros de todo país realizaram um ato simbólico em frente à sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, para reivindicar o fim da violência contra pessoas negras no Brasil.
A manifestação foi realizada pela Coalizão Negra Por Direitos, que reúne mais de 200 organizações de todas as regiões brasileiras, e por representantes de coletivos de familiares vítimas do Estado, como as Mães de Maio, Mães da Maré e Mães de Manguinhos. Durante o ato, o grupo protocolou junto ao STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) “Vidas Negras”, ação que tem como objetivo “barrar o avanço da política de morte contra a população negra brasileira”.


De acordo com a Coalizão, “o preceito constitucional de direito à vida tem sido violado historicamente às negras e negros brasileiros”. Segundo a organização, nos últimos anos, “o aumento da violência e da letalidade policial, os desastres da política econômica e ambiental […] a negligência com a pandemia de covid-19 e o desmonte das políticas públicas de saúde” têm reforçado o processo de genocídio da população negra no país.
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Na ADPF entregue ao STF, as entidades reunidas na Coalizão exigem, portanto, que o Supremo “determine ao Poder Executivo a necessidade da elaboração de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte ao Povo Preto”.
“É hora de dar um basta a essa política de morte. Nós queremos viver, mais que isso, um bem-viver! É por nossas vidas, de nossas filhas e filhos, de nossas irmãs e irmãos, é por um futuro digno para todas e todos!”, afirma o movimento.
Abolição inacabada
Último país das Américas a abolir a escravidão, o Brasil também foi um dos países que mais importou mão de obra escravizada durante a colonização. De acordo com historiadoras como Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, aproximadamente 4,9 milhões de negros e negras africanas foram trazidos à força para o território brasileiro, o que corresponde a cerca de 45% de toda a população que deixou a África como escrava. As historiadoras estimam que cerca de 670 mil morreram na travessia.
Os números continuam a impressionar no contexto atual. Para quem acredita que a escravidão acabou no Brasil, o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas aponta que, de 1995 a 2020, foram encontrados mais de 55 mil trabalhadores em condições análogos à escravidão no país, dos quais 53 mil foram resgatados. Segundo o Observatório, até 2020 a média era de 2.053 trabalhadores resgatados por ano.
Ainda de acordo com dados do observatório, dos mais de 15 mil trabalhadores resgatados entre 2003 e 2020, 8.714 se declaravam como pardos e negros, o que corresponde a aproximadamente 58% do total.
“Maioria”
Representando 54% de toda a população brasileira, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população negra também é maioria quando o assunto é desemprego, com 72,9% das 13,9 milhões de pessoas desempregadas no país. O mesmo acontece em relação à população carcerária, onde as pessoas negras representam 66,7% do total.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a população negra ainda é maioria quando se trata de letalidade policial, onde a população negra representa 78,9% das vítimas mortas pelas forças policiais.
Por outro lado, embora seguindo a mesma lógica, negros e negras costumam ser minoria nas instâncias de poder. No Congresso Nacional, por exemplo, dos 594 parlamentares, apenas 138 se declaram como pessoas negras, conforme aponta o Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB).
De acordo com o IBGE, pessoas pretas e pardas também são minoria em cargos gerenciais, ocupando apenas 29,9% dos postos de comando enquanto 68,6% seguem ocupados por pessoas brancas.
Edição: Jaqueline Deister