

No próximo domingo, dia 19 de setembro, será comemorado, no mundo todo, o centenário do educador, pedagogo, filósofo e Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire. Para celebrar a vida e legado do pernambucano de Recife que revolucionou a educação brasileira e internacional com sua “Pedagogia do Oprimido”, a Pulsar Brasil conversou com Fátima Freire Dowbor, educadora, pedagoga e filha de Paulo.
Na entrevista, ela relembra o convívio com o pai durante a infância no exílio, a influência dele em suas escolhas ao longo da vida e fala sobre a responsabilidade e o privilégio de fazer parte da família de um dos maiores intelectuais brasileiros.
A educadora também comenta sobre o legado do pai, a incompreensão e perseguição que sofreu por conta de seus princípios libertadores e, sobretudo, o valor e pertinência de sua mensagem de transformação e esperança nos tempos atuais.
Pulsar Brasil: Bom, Fátima, acho que podemos começar pela sua apresentação.
Fátima: Certo. Meu nome é Fátima, eu sou educadora e professora formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em Pedagogia. Mas, como vivi vários anos no exílio, também tenho formação em Filosofia, em Coimbra, em Línguas Romanas, na Universidade de Varsóvia, e em Psicopedagogia, no Instituto Jean-Jacques Russeau, em Genebra.
A minha minha trajetória sempre foi na na área da Educação, sobretudo voltada para a formação de professores.
Pulsar: Aproveitando o privilégio de conversar com alguém da família, queria perguntar quem era Paulo Freire para além do autor que conhecemos dos livros. Que lembranças você tem do convívio com ele no dia a dia?
Fátima: Para mim, repare bem, eu considero um privilégio muito grande ter nascido no núcleo familiar no qual eu nasci. Agora, ao mesmo tempo, não dá para ignorar a responsabilidade que isso implica. Ou seja, não é fácil se por no lugar de filha de Paulo Freire. Óbvio que não! É uma tarefa, às vezes, de um peso e uma responsabilidade muito grande.
Agora, eu sempre penso que tudo depende da forma como você encara o desafio. Então, eu sempre trabalhei muito para não ocupar o lugar da expectativa do outro em relação a esse aspecto, entende? Eu sou eu e meu pai é meu pai. Mas óbvio que eu fui e continuo sendo extremamente marcada por toda a forma como ele me educou. Toda minha filosofia também de educação está ancorada na concepção dele. Isso é obvio!
Sobre o convívio, posso dizer que ele era um pai físico não totalmente presente. Durante toda minha infância a imagem que eu sempre tive é dele fechado na biblioteca estudando durante toda a manhã. Mas mesmo assim era um pai que, quando saía da biblioteca, estava extremamente presente com os filhos. Isso fez muito bem a todos nós. Eu tive privilégio de ser acalentada para dormir com meu pai cantando para mim. Quer dizer, é um privilégio enorme! Uma boniteza muito grande.
Pulsar: Na sua opinião, por que a mensagem de Paulo Freire segue tão atual e necessária nos dias de hoje? O que faz com que ela permaneça viva ao longo de tantos anos?
Fátima: Pois é. Para mim isso é o maior legado que ele deixa. É o fato de que o pensamento e a filosofia dele estejam ainda tão atuais. Nesse sentido eu considero que meu pai sempre foi um precursor. Ele era antecipado no tempo dele e talvez por isso a maioria das pessoas ou não entende ou tem realmente uma certa ignorância sobre o que ele apresenta e o que ele postula.
É impressionante como hoje a força do pensamento dele vem de forma muito intensa dar esperança, ou vem, como ele bem dizia, a “esperançar”. Como faz com que todos nós esperançemos!
Porque nós estamos vivendo um tempo de barbárie, um tempo realmente muito feio (para não chamar de outro nome). Toda a concepção dele de educação para informação e para emancipação é altamente preciosa nesse momento de “ditadura”. Nesse momento que a nossa democracia está mais do que nunca fragilizada, para não dizer inexistente, né?
Eu quero crer que essa esperança é uma das razões pelas quais o pensamento dele segue tão forte e tão presente. Afinal, veja, o mundo inteiro está festejando o centenário deste homem! E isso não é por acaso.


Pulsar: Em contrapartida, por que Paulo Freire incomoda tanto a algumas pessoas e setores da sociedade brasileira?
Fátima: A maioria dos ataques vem de pessoas que são – me desculpa – ignorantes. É por pura ignorância. E se você reparar bem e identificar quem são essas pessoas, você vai perceber que são pessoas pouco estudiosas, que não acreditam na capacidade humana e que costumam ser autoritárias e retrógradas.
Eu sinto muito dizer isso, mas é impressionante! Porque é como se nós estivéssemos, aqui e agora, voltando para 1964, quando prendem um homem por ele querer alfabetizar as pessoas, por ele querer que as pessoas aprendam a ler e escrever! Você quer loucura e desumanidade maior do que essa? É muito forte!
Pulsar: Como é para você ver (e conviver com) o legado deixado por Paulo Freire? O que significa para você perceber a mudança que a mensagem dele provoca em tantas vidas e em tantos lugares?
Fátima: É arretado, viu? Você nem imagina! Eu acredito que todo filho e filha de pai ou mãe famosa tem que se trabalhar muito para não se perder na figura do outro. Não se perder nem se esconder na figura paterna ou materna, seja lá quem é o “mito”, né?
Eu convivi todo esse tempo com vários “Paulos Freires”. O Paulo Freire meu pai, Paulo Freire homem, Paulo Freire mito, o Paulo Freire educador conhecido internacionalmente. Pô, meu! É um peso lascado, tá me entendendo?! Mas é também de uma preciosidade divina!
É puxado porque além de ser famoso, o ‘filho da mãe’ é uma figura pública! Então, você tem e não tem o seu pai, dá pra perceber? Mas ao mesmo tempo é interessante porque, por ter nascido no ambiente familiar onde eu nasci, eu digo, acredito e vivo isso: todo educador é um devedor. É um devedor em relação ao que recebeu durante a vida, ao legado que recebeu das diferentes pessoas que o educou. Eu brinco para não levar tão a sério – às vezes a gente tem que brincar porque a vida pode ser um tanto pesada – no sentido que, pô, meu!, eu vou pra cama pagando a minha dívida pelo tamanho dela, né? E foi tanto que eu recebi! Tanto!
Por isso que até hoje, com meus 72 anos, eu trabalho que nem uma danada para justamente ajudar e possibilitar que sobretudo os professores que estão no chão da escola – ou os que querem estar, porque muitos não querem, estão simplesmente na escola, mas não estão no chão da escola – que eles desejem estar ali.
Edição: Jaqueline Deister