

Na semana em que é celebrado o Dia da Consciência Negra, a Pulsar Brasil conversou com Rodrigo de Odé. O ator, pesquisador, capoeira e ogã de Candomblé fala de seus trabalhos recentes, conta a sua trajetória como artista, a importância do teatro negro e das culturas de matriz africana em sua formação, além de comentar a respeito dos desafios e possíveis vias para a superação do racismo na sociedade brasileira.
Segundo Rodrigo, a relação entre os conhecimentos ancestrais das culturas de matriz africana e as questões enfrentadas, hoje, pela população negra são fundamentais para a “transformação global da figura negra nessa sociedade escravocrata” e para a composição “de uma nova personalidade negra para o futuro, emancipada dos valores da sociedade branca burguesa e de consumo”.
Confira a entrevista a seguir:
Pulsar Brasil: Para começar a conversa, você poderia falar sobre o filme-espetáculo “Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol”, lançado este ano pela companhia de teatro negro “Os Crespos”. Do que trata a obra e de que maneira ela aborda a temática do racismo?
Rodrigo: A história de “Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol” fala de um combate. Uma luta de boxe do campeonato de 1962 em que estava em jogo o título mundial entre dois pugilistas afro-caribenhos. Um deles era Emile Griffith, um lutador bissexual. O outro era o Benny Kid Paret, um cubano que se mudou para os Estados Unidos como pugilista e sonhava montar um açougue em Miami.
Já existia uma história entre os dois de alguns combates, mas nesse [combate] decisivo, no dia da pesagem o Kid ofendeu o Emile com ofensas homofóbicas, passou a mão na bunda dele e tal. Então, no dia do combate, tudo isso veio à tona. Além da questão da homofobia, tinha aquela agressividade contida no corpo negro, né? Essa agressividade que, na real, é uma resposta a toda violência que o sistema colonial utiliza para oprimir as populações pretas e as populações nativas dos territórios que eles invadiram e continuam invadindo até hoje.
E aí o Emile descarregou toda essa agressividade em cima do Kid, uma sequência de golpes curvos, um monte de cruzados, um monte de gancho na cabeça e o Kid entrou em coma depois dessa luta. Foi nocauteado na hora e morreu 10 dias depois. O Emile carregou essa culpa durante muitos anos porque evidentemente a intenção dele não era matar aquele garoto. Ambos tinham 24 anos.
Para a gente ter noção das ligações dessa história específica com as questões étnico-raciais, a gente teve um trabalho teórico muito interessante. Por exemplo, o Osmundo Pinho, professor da UFBA [Universidade Federal da Bahia], trouxe um texto do Huey Newton, que era presidente do Partido Pantera Negra na segunda metade de 1960, que falava da maneira como as populações negras periféricas são obrigadas a lidar com o sentimento do medo e da ansiedade e sobre como esses sentimentos são nocivos e autodestrutivos.


Além disso, tem o próprio universo do boxe. Eu fui percebendo também como a história do boxe está ligada à história de emancipação do negro ou da sua inserção dentro da sociedade do consumo. Embora as culturas africanas tenham sido assassinadas, acho que a nossa comunidade soube muito bem recolher esses estilhaços e transformar em outras coisas.
Um dos meus professores de boxe, que é o Breno Macedo, da MM Boxe lá de Rio Claro (SP) e do Boxe Autônomo, me mostrou um panorama de que não existia esquiva até a inserção do negro no boxe. A onda dos ingleses era ver quem aguentava tomar “porrada” e quem derrubava o outro primeiro.
Quando o negro entra no boxe, a esquiva vai junto. E o que é a esquiva senão uma ginga? O jogo de perna, o jogo de cabeça… quanto mais habilidoso e quanto mais dançarino for o boxeador, mais perigoso ele se torna. Essa inserção da esquiva é uma contribuição africana na cultura do boxe.
Então, “Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol” é um trabalho que me ajudou a enriquecer a mente e o corpo. Eu acho que para o espectador negro, também como referência, em termos de representatividade, é importante pontuar essa relação do pensamento com o corpo porque as nossas culturas de raiz não fazem a separação que o mundo moderno faz entre corpo e espírito.
Pulsar: Assim como na produção do filme-espetáculo, a sua formação e trajetória artística tem uma forte ligação com o teatro negro. Qual a importância do teatro negro em relação a temas como representatividade, protagonismo negro e a luta antirracista?
Rodrigo: Numa sociedade racista como a nossa, e como as sociedades ocidentais em geral, quanto mais frentes de combate a população negra tiver para superar a condição de opressão racial, melhor. O teatro negro é uma dessas frentes e é uma atividade antiga das nossas populações.
Cheikh Anta Diop [intelectual senegalês] já apontava que o teatro grego surgiu do teatro negro no Kemet, no Egito, assim como todas as produções culturais e “científicas”, filosóficas e artísticas do mundo helênico têm a sua raiz nas experiências africanas.
Falando da história contemporânea, existem também aqui, na nossa diáspora africana, experiências ricas de teatro negro. Por exemplo, a gente precisa falar da Revolução do Haiti cada vez mais. A partir do momento em que Toussaint Louverture, que foi o grande comandante do exército revolucionário durante a luta de libertação nacional haitiana, assume o governo – quando ele se torna governador da Ilha de São Domingos depois de expulsar os espanhóis e os ingleses – ele fomenta o teatro na ilha. E os atores eram negros.
A gente tem uma tradição nas Antilhas de teatro preto revolucionário, de um teatro preto que fala das revoltas negras. Marcus Garvey, líder jamaicano, criou um projeto de teatro preto também. O [Cyril Lionel Robert] James [escritor nascido em Trinidad e Tobago] tem um livro super importante sobre a revolução do Haiti e escreveu uma peça sobre a revolução na década de 1930.
E aí a gente chega ao Brasil com o Abdias Nascimento, que começou, nos anos 1930, a fazer teatro na prisão. De 1930 para 1944 ele funda o Teatro Experimental do Negro que, a meu ver, é uma experiência super importante porque, além de produzir espetáculos, além do desejo de colocar a figura negra em cena, era um projeto “extra palco”.
Era um projeto político-pedagógico em que diversos integrantes da organização davam aulas de alfabetização, de cultura, de matemática e outros ofícios como, por exemplo, corte e costura. Era um teatro que, além de produzir uma discussão estética e artística para a cena teatral negra, buscava promover o avanço social daquelas pessoas pretas marginalizadas. Eram porteiros, empregadas domésticas, e tal.
O que acontece hoje em termos de teatro negro é fruto dessa história, dessa construção histórica que a gente precisa dar continuidade. E o que nos impulsiona é justamente o desejo de promover uma transformação social, cultural, psíquica, uma transformação global da figura negra nessa sociedade escravocrata.
A cultura negra é uma cultura teatral e, em geral, os grupos de teatro negro que eu conheço trabalham muito nesse fluxo entre essa teatralidade geral das nossas culturas de nação – como a Capoeira Angola, o Congado, o Maracatu, o Candomblé – e a teatralidade específica do teatro negro. Isso envolve uma discussão sobre tradição e contemporaneidade muito rica, porque a gente promove de certa forma a renovação através da reflexão sobre a nossa tradição.
Pulsar: O que significa, hoje, falar sobre “consciência negra”?
Rodrigo: Quando eu comecei a desenvolver a minha pesquisa em filosofia africana de uma forma mais consistente, mais voltado para uma crítica do pensamento racional, eu fiquei um pouco incomodado com a ideia de consciência de modo geral.
Eu achava que a experiência negra do pensar era muito mais profunda. Achava que a gente precisaria ter um outro tipo de designação para tratar da nossa espiritualidade. Porque para nós, não existe essa hierarquia que o mundo branco produziu entre corpo e consciência, impulso cognitivo e impulso criativo.
Porém, aprendendo melhor a ouvir a multiplicidade das opiniões pretas, não me incomoda mais falar em consciência negra. Não importa porque, de fato, a gente precisa reconhecer quem somos, de onde viemos e o que queremos. Ou seja, é um processo, sim, de tomar consciência, de aprender de saber e até de co-nascer.
Existe um uso da noção de consciência negra já instituído, que está longe de mim querer transformar. Não vou gastar uma energia com isso, porque não se trata disso. Nós precisamos falar uma língua que todos e todas possam compreender de modo que as questões e problemas realmente cruciais possam ser resolvidos em comunidade, em coletividade.
Mas acho importante estarmos ligados, em um sentido pedagógico, e produzirmos outras formas de se relacionar com o conhecimento. E isso a gente tem nas nossas culturas de nação. Por exemplo: como é que você aprende os fundamentos do Candomblé, do Orô? Tem que ir lá, tem que fazer, tem que estar na roça, ouvir os mais velhos.
Tem essa questão da oralidade, de perceber o poder da palavra empregada. Entender como uma palavra transmitida por gerações e gerações, uma palavra que atravessou no porão do navio, ainda tem o poder de encantar uma folha, por exemplo. Quando uma palavra se torna palpável ao espírito, ela acaba tocando a alma como se fosse o toque de alguma coisa, uma pessoa apertando as mãos, uma pessoa abraçando. É a gente permitir ser atingido concretamente, carnalmente, corporalmente por uma palavra.
Todas essas noções apontam para a invenção de uma nova maneira de pensar. Uma forma de pensar que não seja acadêmica, que não seja única, que não seja hierarquizante e que contemple a criatividade das pessoas, porque uma das capacidades mais extraordinária das pessoas é criar. A invenção é realmente uma obrigação para quem sofre. Quando a gente inventa a gente alcança oportunidade de superar o sofrimento. Em uma sociedade escravocrata, a invenção é uma forma de superar o sofrimento causado pelo racismo atroz, desumano e injusto em todos os pontos de vista.
Pulsar: E como foi para você esse processo de “reinvenção” como negro?
Rodrigo: Eu fui criado uma criança e um jovem preto muito sofrido. Muita angústia, medo, vergonha de ser quem eu era. Eu mesmo desenvolvi um sentimento de auto-ódio, de autodestruição, algo muito nocivo para a afirmação da minha personalidade. Evidentemente, isso se deu a partir do meu nascimento e da minha necessidade de viver, ou melhor, de ser “obrigado a viver” em uma sociedade racista.
Quando eu comecei a treinar Capoeira Angola com meu mestre [Mestre Anastácio Marrom], com 22 anos, foi quando houve a grande mudança. Eu parei de ter vergonha de ser preto e parei de ter vergonha de ser descendente de nordestino. Em 2001 eu entrei para a Cia dos Comuns [companhia de teatro negro do Rio de Janeiro] e esse processo de construção da minha subjetividade se tornou ainda mais radical.


Eu sempre fui do teatro desde criança e sempre fiz teatro com branco. Não tive uma formação teórica no teatro – fui buscar isso na filosofia –, mas quando comecei a treinar com o Marrom, eu comecei a ter desejo de formar um ator negro. Um ator que ao invés de fazer uma dança contemporânea, jogasse a capoeira. Ao invés de tocar piano, tocasse excelentemente os instrumentos da capoeiragem.
Antes de poder desenvolver esse projeto veio a Comuns, que acabou se tornando um universo muito mais amplo porque, além de conjugar esse meu desejo de formar esse tipo de ator que tocasse o seu berimbau e que dançasse a sua dança afro, vieram diversas referências. Foi um somatório de pessoas com o mesmo desejo que eu, mas que cada um tinha sua fonte, sua origem, a sua raiz.
Veja, atualmente estou fazendo um filme sobre a Revolta dos Malês, um longa dirigido pelo Antônio Pitanga. Nele eu faço o papel do Maioral, um revolucionário rigoroso, um guerreiro e um intelectual que se chama Ahuna e que realmente existiu na Revolta dos Malês.
Além de estar incorporando a Capoeira Angola e o Candomblé na vida desse personagem na minha preparação cênica, eu tive oportunidade de conhecer o Islã. Porque os malês eram africanos muçulmanos. Adentrar nessa cultura do Islã, trazendo a referência do orixá e a referência da Capoeira Angola foi algo extraordinário. Porque é um passo além, um passo a mais. Malcom X, por exemplo, foi membro da nação do Islã.
Então, a gente vai somando referências ao longo da vida e quando a gente consegue formar uma base com essas referências, fica melhor ainda, fica mais gostoso, fica mais rico, dá mais vontade de crescer.
Pulsar: Como é possível combater o racismo na nossa sociedade? Que ações ou estratégias você destacaria nesse sentido?
Rodrigo: A gente vive em uma civilização que foi construída na base da inferiorização do corpo negro e essa imagem não vai ser destruída se não forem destruídas as bases dessa sociedade. E ninguém quer fazer uma reflexão verdadeira sobre a destruição dessas bases. Eu acho que a sociedade civil não tem um desejo radical de inverter essa situação porque demanda uma redistribuição de renda, uma redistribuição de terra e uma redistribuição de valores que tanto a sociedade civil quanto os poderes públicos não querem fazer.
Então, eu acho que essa sociedade não tem solução a não ser, para as populações negras, começar a produzir maneiras de vida em comunidade próximas à ideia do quilombo. E eu tenho visto uma organização negra muito intensa no sentido de produzir novas alternativas comunitárias de vida nessa perspectiva.
O quilombo é uma ordem social que não precisa mais da ordem da casa grande e da sociedade escravocrata. Neste sentido, eu acho que a gente apostar nessa perspectiva de quilombo é um grande desafio.
Em termos mais cotidianos e pessoais, eu penso que uma das grandes alternativas para gente se defender também do racismo é o cuidado do nosso corpo, da nossa saúde, da nossa altivez. Tem um itan [história] de Exú que fala que quando ele anda entre os inimigos, ele os espanta. Quando Exú anda caminhando se balançando da direita para a esquerda, como quem ginga, só de vê-lo caminhar com essa altivez, seus inimigos saem correndo.
Não estou pregando violência, “porradaria”, não! Mas quando a gente treina nossa capoeira bem treinada, quando a gente tem nosso boxe bem treinado, a gente alcança essa altivez que é fundamental. Porque quando você anda altivo na rua, o racista te olha e vai pensar duas vezes antes de te ofender. A preparação do nosso corpo preto a partir do cultivo da nossa altivez também é um dos desafios.
A gente se amar, cuidar do nosso corpo, prepará-lo para o combate e enaltecer a nossa marcialidade africana, isso causa respeito. Impõe respeito no simples caminhar. Devemos cultivar serenidade e altivez para enfrentar os desafios da sociedade racista.
Edição: Jaqueline Deister