Redação
O futuro dos povos indígenas e do meio ambiente no Brasil pode começar a ser definido nesta semana pelo Congresso Nacional. Na pauta de votações da Câmara dos Deputados está o Projeto de Lei 490/07, que pretende alterar as regras para demarcações de terras indígenas (TIs) no país, adotando a tese do marco temporal como critério para o reconhecimento do direito dos povos originários aos territórios onde vivem.
De acordo com a proposta, o marco temporal em questão seria o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Ou seja, só teriam direito à demarcação de seus territórios os povos indígenas que comprovem “objetivamente” que, em 5 de outubro de 1988, tais áreas eram habitadas em caráter permanente e usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural.
Na última semana, a Câmara aprovou por 324 votos a favor e 131 contra o regime de urgência para tramitação do projeto. Na ocasião, o presidente da casa, deputado Arthur Lira (PP-AL) disse que pretendia pautar a votação para esta terça-feira (30).
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Com o anúncio de Lira, nesta terça-feira organizações indígenas de todo o país realizaram manifestações e protestos em diversas cidades, capitais, comunidades e aldeias contra o que chamaram de “genocídio legislado”. A própria Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, utilizou as redes sociais para apelar a cidadãos e políticos que pressionem os parlamentares para rejeitar a proposta.
“Votar o PL 490 no Congresso é acabar com uma esperança de futuro. É sim um genocídio contra os povos indígenas, mas também um ataque ao meio ambiente. Dizer não a esse PL é pela vida na Terra”, publicou a ministra.
Caso seja aprovado na Câmara, o PL segue para análise no Senado e, caso também tenha o aval da Casa, avança para a sanção presidencial. O presidente Lula (PT) pode sancionar ou vetar o texto.
O que diz o PL 490?
Além de estabelecer o marco temporal com critério para a demarcação de TIs, o PL 490 traz consigo outros 14 projetos de lei apensados, cujas propostas mais preocupantes do ponto de vista dos defensores da causa indígena e socioambiental são:
- A proibição da ampliação de terras indígenas já demarcadas;
- A adequação à nova regra – do marco temporal – de processos de demarcação que ainda não tenham sido concluídos;
- A flexibilização do uso exclusivo de terras pelas comunidades e a permissão de que a União retome áreas reservadas em caso de alterações de traços culturais da comunidade;
- A permissão de contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas – como, por exemplo, a exploração de potenciais energéticos, recursos hídricos e riquezas minerais;
- A possibilidade de contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”.
De acordo com a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), uma possível aprovação do PL afetaria “todas as TIs, independente da situação e da região em que se encontram”. Na prática, segundo a Apib, isso corresponderia a colocar 1393 terras indígenas “sob ameaça direta”.
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Em relação aos povos isolados e de recente contato, a associação acrescenta que “seria difícil ou até impossível comprovar a presença desses grupos em 5 de outubro de 1988 nas terras onde hoje habitam”.
“O Estado brasileiro até hoje desconhece a existência dessas comunidades. Não é razoável exigir que, numa data específica, esses povos estivessem reivindicando formalmente o reconhecimento e regularização de seus territórios”, destaca a Apib.
A quem interessa?
De autoria do ex-deputado Homero Pereira (PSD-MT), a tese do marco temporal é defendida pelo setor ruralista no Congresso. O principal argumento dos apoiadores do PL 490, como o relator da pauta na Câmara, o deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), é o de que a proposta garantiria “segurança jurídica” para os proprietários rurais, protegendo-os do risco de desapropriações para demarcações de TIs.
Os povos indígenas, por outro lado, consideram a tese do marco temporal “uma máquina de moer história” que, contraditoriamente, inverte a lógica temporal. Segundo a Apib, a tese propõe uma interpretação da história do país em que “quem não estava passa a estar, e quem estava passa a ser invasor.”
“Além de nocivo, o marco temporal tira a gente da história, reposiciona a gente na história, transforma o bandido em mocinho e transforma o originário em um ser perverso que ocupou e invadiu a terra de outras pessoas. O marco temporal é isso, ele é temporal mesmo, essa máquina volta no tempo, reverte o tempo, troca as pessoas de tempo, coloca as pessoas em tempo diferente, apaga a memória e muda a história”, critica a associação que produziu um conteúdo especial sobre o tema.
Além da ameaça aos povos indígenas, a Apib ressalta os riscos do PL ao meio ambiente pois, segundo a associação, as terras ocupadas tradicionalmente pelos povos originários são as áreas com maior biodiversidade e vegetação mais preservadas no país. Um levantamento da Apib em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) aponta que 29% do território ao redor das TIs está desmatado, enquanto dentro das mesmas o desmatamento é de apenas 2%.
“Ou seja, demarcar as Terras Indígenas e mantê-las protegidas de invasores ilegais, garimpeiros, madeireiros e o avanço do agronegócio é garantir que o estoque de carbono nessa área seja mantido e os direitos dos povos indígenas respeitados”, sublinha.
Judiciário
A tese do marco temporal também está em pauta no Judiciário. O julgamento do tema no STF começou em agosto de 2021 e – conforme anunciado pela presidente da casa, a ministra Rosa Weber – deve ser retomado no dia 7 de junho.
O processo em questão se refere à ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, na região do Vale do Itajaí.
Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão tomada neste caso servirá de diretriz para todos os demais casos ligados a procedimentos demarcatórios. A estimativa da Corte é que a decisão afetaria, hoje, pelo menos 82 casos semelhantes.
Até o momento, a votação está empatada. O relator da ação, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do marco temporal. Já o ministro Nunes Marques, segundo a votar, divergiu e se manifestou pela aplicação da tese.
*Com informações da Agência Câmara, Carta Capital, Folha de S. Paulo, G1 e Apib
Edição: Jaqueline Deister