*Leonel Yáñez Uribe
Com quase 11 pontos de diferença, Gabriel Boric torna-se o presidente mais jovem do Chile, o mais votado da história e o único que, depois de ficar em segundo lugar no primeiro turno, vence as eleições. Os números apontam que Boric alcançou mais de 4 milhões e 600 mil votos, já o seu oponente, Kast, que representa a direita mais próxima a do ex-ditador Pinochet, contabilizou 3 milhões e 600 mil.
A sensação de um retrocesso em tempos de ditadura foi superada com o triunfo do candidato da esquerda: “a esperança ganhou do medo”, é a frase que tem sido falada por muitos chilenos e chilenas. A verdade é que não daria no mesmo se o resultado da eleição tivesse sido outro, considerando o processo em curso da convenção constitucional, cujo objetivo é a elaboração da Carta fundamental que supere a herdada do Pinochet. Boric se colocou como a melhor garantia para a futura implementação dessas definições, que já sabemos, buscará repor um regime que se orienta para um Estado de Bem-estar.
Neste contexto, o que a esquerda traz de novo? Firmada na organização e em movimentos sociais, ela pretende atender as reivindicações do mundo feminista, ecologista e dos povos originários. Seu programa busca maior participação social e política; plano econômico e de fazenda para o desenvolvimento sustentável e durável com respeito ao meio ambiente, e aprofundar as formas da democracia, depois de 30 anos de transição simulada, democracia dos acordos que produziu as bases do mal-estar expressado na revolta de 2019.
A jornada eleitoral: entre o medo e a esperança
Faltavam poucas horas para o resultado e já se podia intuir que os jovens voltavam a se mobilizar e seus votos claramente favoreceram ao candidato Boric. Um milhão e duzentos mil novos votos, em relação ao primeiro turno. A consigna da revolta “Chile acordou”, se atualiza nas horas em que milhares e milhares de chilenos e chilenas comemoram o presidente eleito, que pode ser filho da grande maioria dos chilenos e chilenas e que com sua idade, ratifica a média de idade da população chilena, que é precisamente de 35 anos.
Mas a jornada não esteve isenta de conflitos. Ao meio-dia, parlamentares da aliança vencedora “Apruebo Dignidad”, denunciaram a falta de transporte público que facilitaria o deslocamento dos eleitores aos locais de votação. O governo teve que reconhecer erros na organização, ainda que para muitos podia se ler como um boicote para dificultar precisamente uma maior participação.
Historicamente, cada vez que se assistiu massivamente a ida do povo às urnas, as posições progressistas e de esquerda triunfaram. A resposta, diante da evidente falta de locomoção pública, foi a organização de simpatizantes e militantes da coalizão de esquerda para ajudar a transportar eleitores que aguardavam nos pontos de ônibus, que esperavam a mais de uma hora, o meio de transporte público para ir aos lugares de votação.
Por outro lado, a campanha realizada por Kast, cujo planejamento parece ser réplica das estratégias de Trump, baseada num exército de bots replicando falsidades a respeito do candidato da esquerda, anunciando que chegaria o caos “com a chegada do comunismo”, significou que a consigna levantada por Boric “Que a esperança ganhe do medo”, finalmente se impusesse.
Às 18 horas de domingo começou o fechamento das mesas de votação. Já às 19:30, ficava clara a contundente vitória de Gabriel Boric com 55,87% dos votos contra 44,13% de José Antonio Kast. A eleição teve um total de 54 % de participação popular. A taxa foi a mais alta desde o fim do sistema binominal, no ano 2013. No Chile o voto não é obrigatório.
A esquerda unida festeja
As ruas e praças desbordaram com clamores e cânticos, e bandeiras ao vento nas distintas cidades do país. O cenário principal da festa do triunfo da aliança “Apruebo Dignidad”, integrada pela Frente Ampla e o Partido Comunista, se localizou em plena Alameda, de frente para a Praça Itália agora conhecida como Praça Dignidade, lugar emblemático da manifestação e revolta social. Lá foi o local onde Gabriel Boric expressou que “devemos manter o processo que começamos a percorrer, passo a passo”, processo iniciado em outubro de 2019 e que significou assumir mudanças que até uns anos atrás eram impensadas.
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O Chile colocou uma barreira à cultura do medo, autoritária, misógina, depredadora, que representava o derrotado candidato, admirador de Pinochet e seu regime ditatorial. Em março se produzirá a mudança no interior do Palácio da Moneda. Piñera, que nos seus últimos dias parece estar condenado à insignificância, será o último mandatário do duopólio político, que compartilharam direita e centro-esquerda e revezaram no poder nas últimas três décadas.
Pelo que parece se encerra um ciclo. Gabriel Boric, que na madrugada do 15 de novembro de 2019 coloca sua assinatura pessoal para que se produza o denominado “Pacto pela Paz” reivindicando a necessidade de uma nova Constituição, encarna um tipo de liderança à esquerda que volta a convocar milhões de chilenos e chilenas pelas transformações para um Estado que pare de ser subsidiário e se comprometa em promover e resguardar os direitos sociais que historicamente se conquistaram e que Pinochet, em 17 anos de ditadura, fez desaparecer como fez com milhares de pessoas. O certo é que o Chile acordou e os resultados destas eleições parece ratificá-lo.
*Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação na Universidade de Santiago de Chile
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Tradução: Sofía Hammoe