O filme “Argentina, 1985”, disponível na plataforma Amazon Prime Video, produzido por argentinos e americanos é forte concorrente ao Oscar 2023 de melhor filme internacional. Tem como protagonistas os atores Ricardo Darín e Peter Lanzani, que interpretam Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, dois promotores que ousaram investigar e processar a ditadura argentina, em 1985. Sim, o filme foi baseado em fatos reais!
A ditadura argentina, assim como todos os outros regimes ditatoriais militares que tomaram conta da América Latina entre os anos 1960 e 1985, foi sangrenta, torturou, matou, silenciou o povo. Deixou feridas abertas na sociedade, em milhares de pessoas: nas torturadas, nas mães e pais, companheiros, companheiras das pessoas mortas e toda uma geração de órfãos. Quem de nós não conhece uma história, alguém que vivenciou este período triste das histórias das repúblicas latino-americanas? Infelizmente poucos sabem que os períodos de regimes ditatoriais na América Latina tiveram influência direta dos Estados Unidos, através dos fundamentos e princípios de formação militar.
No Brasil, essa corrente de pensamento foi representada pela Escola Superior de Guerra e a Doutrina de Segurança Nacional, que tinham como fundamento ideológico a perseguição e extinção ao comunismo e aos comunistas.
Qualquer governo, que no ponto de vista deles, se baseasse no personalismo, na demagogia e no populismo, era considerado ameaça, possibilidade de “infiltração comunista” e, portanto, justificava a necessidade da tomada do país pelos militares. Foi assim no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Paraguai, no Peru, na Bolívia.
Feridas abertas
O filme retrata o momento histórico da abertura política, do governo de Raúl Alfonsin e o julgamento dos militares responsáveis pelas mortes, torturas e desaparecimentos de argentinos no período duro da ditadura militar argentina. Dois personagens foram fundamentais para que o julgamento e condenação de militares como o ditador Jorge Rafael Videla, que promoveu uma sangrenta perseguição aos opositores de seu governo, entre 1976 e 1981. Os dois promotores, Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, lideraram um grupo de jovens advogados na Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas enfrentando todo o tipo de ameaças, na condução das investigações e recolhimento de provas contra os militares que promoveram os crimes.
Diferente do que aconteceu no Brasil, a lei da anistia em que os militares argentinos se auto-anistiaram, foi revogada pelo presidente Alfonsin e eles puderam ser investigados e condenados. Tal julgamento foi um acontecimento que serviu e serve como exemplo para as democracias do mundo, uma vez que o perdão dado a ditadores em muitos países como o Brasil deixou feridas abertas, a certeza da impunidade e uma cumplicidade com formas totalitárias que adormeceram ao longo dos anos de uma reconstrução democrática e ressurgiram dos umbrais cheios de podridão no momento presente, fazendo apologia ao fascismo e toda sorte de crimes, justificando que a ditadura militar deveria ter matado mais, naturalizando e banalizando a violência através do estímulo ao armamento, e desconstruindo toda forma de vida em sociedade baseada em princípios éticos, humanos e democráticos!
Não tem como assistir ao filme e não relacionar os fatos históricos retratados nele com a realidade brasileira que estamos vivendo, de forma mais enfática, exatamente neste momento pós-eleição, quando vemos grupos em todo o país defendendo a intervenção militar. É algo inexplicável. E aí é preciso trazer uma reflexão do filósofo Leandro Karnal feita há sete anos, durante uma entrevista, e que continua bem atual:
“Quando vejo pessoas defendendo a volta da ditadura militar, olho para a idade. Se tratar de um jovem, me sinto na obrigação de explicar o que é o arbítrio, o que é a cassação de direitos, como um habeas corpus, o que foi um AI-5, o que é a tortura de mulheres grávidas, o que é o fim da liberdade de imprensa, o que é a barbárie da concentração de renda que prevaleceu na ditadura militar. Se for uma pessoa de idade, eu atribuo a falta de memória que a idade pode estar provocando nesta pessoa. Não há como defender eticamente, moralmente num plano mínimo de humanidade uma intervenção militar. Nossos problemas foram piorados pela ditadura. Não se deve questionar a democracia, deve-se aperfeiçoá-la. É preciso estudar o que foi a barbárie da ditadura, a quantidade enorme de escândalos financeiros, de gente que enriqueceu ilicitamente acobertada por militares”.
“É preciso estar atento e forte”
Mas por que no Brasil, diferente da Argentina, como mostrado no filme, existe este tipo de crença de que no tempo da ditadura militar a vida era melhor? A reflexão que faço é de que já passou da hora de enfrentarmos esta cultura e esta falácia do povo cordial.
Durante muitos anos, séculos, vivemos sobre o jugo do patriarcado, dos senhores de terra, de uma elite que construiu esta ideia de povo cordial para manter sobre o seu controle o pobre, o negro, a mulher, o índio, o mestiço! Na verdade, a cordialidade apregoada por esta elite, só serviu para disfarçar a violência da enorme desigualdade social que vivemos, para legitimar a meritocracia, a corrupção e toda e qualquer arbitrariedade cometida pelo Estado a serviço desta elite.
A falácia do povo cordial ficou para trás quando um torneiro mecânico ousou ser presidente da República, ainda que para isto, tivesse que ter costurado tantos acordos que quase perdeu os anéis e os dedos – sem falas de duplo sentido! As políticas sociais implantadas nos governos petistas, seus melhores acertos, suscitaram um ódio nesta elite, que conseguiu em pouco tempo, junto com o poder econômico, midiático e político, destituir um governo legitimo e alimentar um ninho de serpentes, baseado no que tínhamos de pior: políticos corruptos, indústria de fake news, aliados à milícia, ao capital e aos interesses estrangeiros e a representantes religiosos oportunistas.
Vimos e vivenciamos de 2016 para cá um circo de horrores! O país chegou ao fundo do poço, sem perspectivas e dividido entre o mundo real e o mundo paralelo povoado por pessoas comuns lideradas por oportunistas que construíram uma ideologia com símbolos fascistas, métodos fascistas e os fizeram acreditar que lutam por um país melhor. Sem comunista, sem diversidade, sem respeito, baseado na força e na fé em um deus mal, torturador, que incita o ódio e a violência! Pasmem!
Creio que para chegar nesta situação, muita gente boa, importante e com boas intenções deixou de fazer o seu dever. Ignoraram e até debocharam do parlamentar que elogiou torturador; não se posicionaram quando um grupo de homens, machos, se colocaram contra uma dirigente mulher pelo simples fato dela não querer compactuar com as pautas secretas de alguns; acharam natural emissoras de TV terem acesso a decisão de juiz e elaborarem pautas-bombas para desmoralizar pessoas, partido e autoridades e não se posicionaram! Naturalizaram mentiras como as criações sobre “ideologia de gênero”, “mamadeira de piroca”, banheiro unissex nas escolas e por aí afora.
Acredito que faltaram aos bons a coragem dos irmãos argentinos que mesmo sob ameaças, enfrentaram o sistema e fizeram valer as leis e prevalecer a justiça. Sinceramente, ao assistir ao filme e conhecer a história recente do país vizinho, tive uma “inveja” de como eles fizeram diferente diante de uma página de sua história, parecida com a nossa.
Estamos começando um novo período político e histórico, a esperança voltou! Espero que não sucumbamos às armadilhas do momento, do poder! Que aqueles e aquelas que elegemos estejam atentos e fortes, como aconselha Caetano em “Divino e Maravilhoso”, porque já não podemos repetir os mesmos erros do passado, sob pena de, ainda que temendo a morte, sermos testemunhas do fim da democracia!