O dia 26 de junho é celebrado em todo o mundo como o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1997, exatamente dez anos após a assinatura da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura (Uncat). Além de reforçar a necessidade de criar condições de amparo solidário, material e psicológico às vitimas de torturas e maus-tratos, o dia lembra o compromisso assumido pelos Estados de erradicar tais práticas em seus territórios e, sobretudo, no âmbito dos órgãos e sistemas públicos. Um desafio histórico e urgente, mas que tem se tornado cada vez mais difícil no atual contexto brasileiro.
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Para Deise Benedito, mestre em Direito Criminal e ex-perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) “a consolidação do Estado Democrático de Direito passa necessariamente pela erradicação da tortura como método de desumanização”. Contudo, ela explica que as práticas de tortura e maus-tratos nunca foram exceção, mas a regra sobre a qual o Estado brasileiro foi erguido.
Do processo de escravização dos povos indígenas e africanos até as atuais violações de direitos em espaços de restrição da liberdade e em comunidades pobres e periféricas de centros urbanos, a tortura sempre esteve presente como instrumento de disciplinamento e subordinação por parte do Estado e seus agentes. Um “crime de oportunidade”, como Deise define, e que se moderniza e se ressignifica conforme o contexto histórico e social que o país atravessa.
Um problema de mais de 500 anos
Ao falar sobre apoio às vítimas de tortura, Deise lembra que os primeiros povos torturados no Brasil foram os indígenas, com a invasão dos europeus. “Depois isso se alastrou, se ampliou e se modernizou com a escravização de africanos e africanas no país”. Ainda como resgate histórico, a advogada faz questão de referenciar que a primeira iniciativa de combate à tortura em território nacional data do século 18 e surgiu de uma mulher escrava: Esperança Garcia. Em 1770, Esperança encaminhou uma carta ao governador do Piauí denunciando os maus tratos a que seu marido e filhos eram submetidos na fazenda que trabalhavam.
Embora o uso de chibatas, ferro em brasa e máscaras de ferro tenha sido praticamente abolido junto com a escravidão, Deise atenta para o fato de que ainda hoje métodos de desumanização continuam sendo utilizados por agentes públicos.
“Quando eles invadem as favelas, arrombam casas, prendem as pessoas com prisões arbitrárias onde as pessoas são ofendidas na sua dignidade, quando essas pessoas são espancadas à luz do dia, quando temos episódios na periferia de policiais jogando jovens negros ao chão, com o joelho no pescoço. Tudo isso é também é tortura”, comenta.
Com a experiência de quatro anos visitando espaços de restrição de liberdade como perita do MNPCT, Deise explica que a prática de tortura muitas vezes extrapola a agressão física. Envolve desde privações de itens básicos, como água potável, insumos e produtos de higiene, medicamentos e alimentação adequada, até formas mais cruéis e sofisticadas.
“Nem sempre os métodos de tortura são apenas aqueles à base de espancamento, queimar com cigarro, choques elétricos ou mesmo colocar saco no pescoço. Um novo método, por exemplo, é deixar uma pessoa baleada com a bala alojada três, quatro, cinco meses, até atrofiar os músculos ou então ter que ser obrigado a amputar perna” detalha à Pulsar Brasil.
Apoio às vítimas
Sobre as formas de apoio às vítimas de tortura, a assessora de segurança pública e direitos humanos da liderança do PSOL na Câmara dos Deputados explica que os traumas vividos por quem passa por uma ou mais situações de torturas exigem uma abordagem interdisciplinar, envolvendo, por exemplo, tratamentos médicos, psicológicos e de assistência social. Contudo, Deise salienta que reparar os danos não é suficiente. Para ela é fundamental que o Estado assuma as funções de prevenção e combate às práticas de tortura através do fortalecimento do MNPCT e da criação de Comitês de Prevenção e Combate à Tortura em todos os estados da federação. Medida que, inclusive, é recomendada no relatório “Situação dos Direitos Humanos no Brasil”, divulgado este ano pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Neste sentido, a ex-perita lamenta o recente processo de desmonte das políticas públicas de prevenção e combate à tortura por parte do Governo Federal. Segundo ela, desde que o atual presidente assumiu o governo, o MNPCT passou a ser subordinado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e tem sofrido com restrições às ações nos estados e o contingenciamento de recursos materiais e de servidores.
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De acordo com relatório do próprio Mecanismo, o ápice teria sido a substituição do decreto 8.154/2013 – que criou e regulamentava a atuação do MNPCT – pelo decreto 9.831/2019, que condiciona a atuação dos Peritos e Peritas do MNPCT à “função pública relevante” não remunerada. Os peritos são especialistas independentes que têm a responsabilidade de visitar e avaliar instalações de privação de liberdade, como centros de detenção, estabelecimento penal, hospital psiquiátrico, abrigo de pessoa idosa, instituição socioeducativa ou centro militar de detenção disciplinar. Segundo Benedito, dos onze peritos previstos inicialmente, o órgão conta hoje com apenas quatro. E mesmo esses não sabem se serão remunerados ou não.
Privação da liberdade
De acordo com estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o Brasil possui hoje mais de 700 mil pessoas presas. Número que confere ao país a posição de terceira maior população prisional do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China, com respectivamente 2,1 milhões e 1,7 milhão de presos. Segundo o MMFDH, só em 2019 o serviço de denúncias “Disque 100” recebeu mais de 10 mil queixas de tortura, violência física, psicológica, sexual e institucional contra pessoas em espaços de restrição de liberdade.


Desse cenário, Deise Benedito destaca a situação das milhares de mulheres encarceradas e, especialmente, as grávidas. Ela comenta que, nesses casos, as torturas se dão através da falta de alimentação adequada, de assistência ginecológica e de ameaças de perda de guarda da criança.
“Tortura é todas as mulheres da cela terem que bater na grade para que uma mulher à beira de dar a luz possa ser removida para um hospital. Tortura é uma mulher ser algemada nos momentos do parto e durante o parto ser mantida em algemas ainda”, descreve a assessora.
Por último, Deise ressalta os efeitos da pandemia de Covid-19 em prisões e instituições socioeducativas. Segundo ela, além das celas superlotadas, o déficit de comida e a falta de higienização, as dificuldades impostas pela pandemia ao acompanhamento de pastorais carcerárias e entidades de direitos humanos provocaram uma elevação dos casos de espancamentos nesses espaços.
A ex-perita também aponta como grave a suspensão das audiências de custódia de modo presencial. Deise conta que, com a chegada da pandemia, as audiências de custódia passaram a ser feitas por videoconferência, o que trouxe uma série de limitações às oitivas. Seja pela dificuldade de conexão e transmissão, seja pela dificuldade de se verificar possíveis lesões, ou mesmo pela falta de garantias de que tais lesões serão avaliadas como lesões de tortura.
“A gente não quer de forma nenhuma que a audiência de custódia, que foi uma conquista da sociedade civil brasileira, fique relegada a apenas uma videoconferência. Tortura não se vê através da uma videoconferência. Se você pode abrir o comércio para o dinheiro circular – e as pessoas têm que seguir uma série de rituais e cuidados – você também pode seguir os mesmos cuidados para manutenção da apresentação do preso de 24h em audiência de custódia”, protesta a especialista em Direito Criminal.