Nas últimas semanas, dois casos protagonizados por pessoas ligadas ao Governo Federal envolvendo questões de violência sexual contra crianças e adolescentes fizeram com que o tema ocupasse as principais manchetes e debates de todo país.
No primeiro deles, ocorrido no dia 8 de outubro, Damares Alves, ex-titular do Ministério Mulher, Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), afirmou, durante um culto na Assembleia de Deus Ministério Fama, em Goiânia (GO), ter descoberto supostos crimes sexuais cometidos contra crianças traficadas na Ilha do Marajó, no Pará. Na presença de centenas de fiéis – inclusive crianças – e sem apresentar quaisquer provas, a senadora eleita este ano pelo Distrito Federal (DF) fez questão de descrever com detalhes supostas práticas de violência que teriam sido constatadas na região, como mutilações corporais e regimes alimentares que facilitariam abusos sexuais.
O segundo e mais recente escândalo envolve o próprio presidente da República Jair Bolsonaro (PL). Na última sexta-feira (14), em entrevista a um podcast, o candidato à reeleição narrou um episódio em que diz ter encontrado meninas venezuelanas “bonitinhas, de uns 14, 15 anos de idade” em Brasília. No relato, o presidente da República acrescentou que, segundo ele, “pintou um clima”. Ele ainda admitiu que se convidou para entrar na casa das meninas.
Além da repercussão nacional em diversas mídias, ambos os casos têm sido investigados pela Justiça. Para compreender os impactos de tais declarações bem como as implicações da atuação do governo Bolsonaro no que tange o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, a Pulsar Brasil entrevistou a psicóloga e doutora em Educação, Cida Alves.
Com mais de 25 anos de trabalho no sistema público de Saúde com o atendimento a pessoas em sofrimento mental em decorrência de situações de violência, Cida comentou sobre a cultura do estupro e da pedofilia no Brasil, o retrocesso vivido pelo país em relação à proteção de vítimas de violência sexual nos últimos anos e elencou ações e medidas necessárias para reverter o atual quadro de desamparo às crianças e adolescentes brasileiras.
Confira a entrevista a seguir:
Pulsar: Na sua opinião, o que os casos de Damares e Bolsonaro representam na atuação do atual governo no que se refere ao combate à violência sexual e à proteção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil?
A realidade da violência sexual é algo dramático na vida das crianças. Passar por experiências de violência têm um impacto enorme no desenvolvimento subjetivo, deixa marcas no processo físico da criança e, dependendo da idade, se isso é muito recorrente ali na primeira infância, a criança pode desenvolver algumas perdas inclusive no sistema neurofisiológico.
É algo gravíssimo e é um tema que tem um apelo popular muito grande. E a gente viu que essa pauta tão importante foi sequestrada pela extrema-direita de forma semelhante ao que ocorreu com a nossa bandeira e os símbolos nacionais. E a extrema-direita, da forma que ela age, tem nos atrapalhado a realmente proteger as crianças.
Em relação a Damares, ela já vem há muito tempo cometendo crimes. O específico dessa vez foi ela expor conteúdos inadequados a um público que tinha crianças.
Narrar práticas sexuais para crianças se constitui numa violência sexual.
A violência sexual pode ser por toque, por contato, exposição, de imagens ou palavras. A gente conhece mais a figura do estupro, que tem a conjunção carnal, mas ao trazer conteúdos daquela natureza, extremamente perversos, para as crianças, Damares já está expondo a criança a uma violência sexual. Então nesse ato em si ela é, sim, uma autora de violência. Ela cometeu a violência sexual tipificada por palavras de conteúdo sexual que descrevem práticas sexuais.
Mas a Damares, e tudo que ela representa, é algo que há muitos anos nos incomoda e eu acho que passou da hora de quem realmente leva a sério o enfrentamento das violências dizer um basta. Quando ela usa esses conteúdos, normalmente de uma forma espetacular – porque o que ela quer é usar esse apelo afetivo, essa repulsa que a gente tem a esse tipo de prática, para modular os afetos e atacar seus adversários, para ter ganhos no seu projeto político –, ela causa um estrago muito grande. Ela usa uma fake news ali do submundo mais sujo da deep web para escandalizar as pessoas da igreja, causar o pânico moral e afetar a escolha do voto – tem todo um processo de manipulação.
Ela capturou essa pauta, mas ela realmente não está preocupada com a proteção da criança. Ela está preocupada com o ganho político de valores moralistas. Tanto é que ela não se preocupa com o estado ou a vida da vítima. Se fosse assim, ela jamais teria feito o que fez com a menina de 10 anos que foi vítima de violência dos seis aos 10 anos por uma pessoa ligada a família e que engravidou e necessitava da interrupção da gravidez. [o caso ocorreu em setembro de 2020, enquanto Damares ainda era ministra]
Damares é mulher, foi vítima de violência, mas está aliada ao poder patriarcal, está a serviço deles. Por isso ela não nos representa. Ela não é uma figura que liberta e é empática às mulheres que sofrem. Ela está tirando vantagens dentro desse modelo através do que ela pode oferecer para esse grupo de poder, de enriquecimento e de controle. E, neste sentido, ela é uma arma muito eficiente.
Pulsar: E em relação à declaração de Bolsonaro sobre as meninas venezuelanas, que avaliação você faz do “relato” do presidente? Que impactos podem ser gerados por falas como essa?
Para falar desse caso, eu quero falar de violência simbólica. A Marilena Chauí diz que violência é você transformar as diferenças em desigualdades e, nessa relação de desigualdade, você dominar o que é considerado inferior.
As nossas constituições são feitas de diferenças, seja de etnias, de gênero, de interesses, de classes. E aí o que é a violência simbólica? É você pegar essas diferenças e hierarquizar algumas características como superior, por exemplo: o homem sobre a mulher, o branco sobre o negro, as populações de origem europeia sobre os povos colonizados. Conforme a gente transforma a diferença em desigualdade, agente constrói estigmas.


Vamos imaginar que, para chegar no feminicídio, que é o limite do horror, você tem um discurso que diz que a mulher vale menos, que a mulher não presta, que ela tem que ser dominada, que o homem que não domina a mulher é fraco, que não deve se levar desaforo, que você tem que resolver seus conflitos pela violência, certo? Esse caminho é feito por discursos e, normalmente, discursos baseados em estigma. Quando o Bolsonaro fala das meninas, ele é um senhor de 67 anos que vê meninas que ele descreve como “bonitinhas” e que ele sente “um clima”.
Em primeiro lugar, ele expressa um valor de que as meninas, estando ali na vida delas, a partir do desejo dele elas podem ser erotizadas. O que acontece, nesse caso? Uma projeção. O homem projeta sua forma de entender as meninas e coloca nelas a própria malícia ou o próprio desejo. O desejo não é de estar com elas respeitando a condição de meninas. Mas é tirar proveito sexual delas.
Esse pensamento é muito comum e é um pensamento da cultura pedófila que erotiza, ou seja, projeta desejos de adultos na criança, Transforma uma criança, uma menina, em um objeto sexual. Isso é cultura pedófila. E Bolsonaro, nessa fala, reforça essa cultura.
Além disso ele, ele comete uma violência simbólica em relação à classe social e à nacionalidade. Ele estigmatiza as meninas pobres e estrangeiras como meninas que estão sempre aptas para a exploração sexual. Isso é muito sério! Nós brasileiras que vamos para o exterior, a gente vive isso o tempo todo independente da idade. Quando se cria um estigma sobre um determinado tipo, esse estigma vai nos acompanhar em qualquer lugar e onde a gente for. E o que Bolsonaro coloca e reforça nessas meninas é esse estigma de que meninas pobres estão sempre aptas e tirando vantagem em relação ao sexo.
Pulsar: Como você avalia a atuação do governo Bolsonaro em relação à proteção das crianças e adolescentes no Brasil?
O que a gente busca para o desenvolvimento das crianças é um ambiente seguro, protetivo, em que os laços se estabeleçam a partir do diálogo. Essa seria a fonte do desenvolvimento e da saúde. Mas o que a gente tem visto é exatamente o contrário.
Começa com a militarização das escolas, ou seja, você rompe com a lógica da escola como um espaço de autonomia e esclarecimento e passa a ter a escola como um espaço de obediência e controle absoluto. Isso tem apelo popular porque a gente precisa trabalhar melhor com as famílias essa questão da socialização das crianças, da lógica da autoridade. Se a gente quer proteger a criança de verdade, a gente tem que romper com essa lógica de obediência cega ao adulto.
Se a criança aprende desde pequena que deve obedecer um adulto independente de qualquer coisa, ela acaba aprendendo que tem que obedecer, inclusive, o adulto que é um autor de violência.
Uma das consignas que a gente trabalha na educação sexual é que a gente deve respeito às pessoas que são respeitáveis. Quem nos oprime, quem nos machuca, quem quer fazer de nós um objeto, a gente não tem que respeitar, a gente tem que buscar a nossa autodefesa. E o que tem sido reforçado por esse governo no processo de socialização dos meninos e das meninas é a lógica da obediência e do domínio. Essa cultura da violência que Bolsonaro e a extrema-direita trazem atinge diretamente a criança. E eles têm o objetivo de atingir a criança porque o projeto deles é a longo prazo. Eles querem construir sujeitos que servirão ao projeto deles.
Todo o projeto de dominação da extrema-direita vai estar relacionado à socialização da criança com o objetivo de desenvolver processos de manipulação em que se consiga um sujeito robotizado, que obedece cegamente a ordem. A isto se deve a grande adesão dos nazistas. Não eram todos cruéis e perversos. Mas aquelas pessoas tinham como ideal máximo a ordem e obediência sem fazer nenhum processo de reflexão.
Pulsar: Como é possível reverter esse quadro de violência no país? Que medidas são urgentes para avançarmos no enfrentamento às violências contra crianças e adolescentes no Brasil?
Eu acho que a primeira coisa é nós enfrentarmos a construção da mentira. Essa lógica que coloca como igual um conhecimento aprofundado com a opinião.
Isso tem sido feito de forma planejada e não é à toa que hoje nós temos pessoas que acreditam que a terra é plana. À medida que a pessoa está nesse processo que a gente chama na Psicologia de “autoengano” e de “dissociação cognitiva”, ela começa a aceitar outras e outras inverdades. Veja o que aconteceu na Covid. Eu sou profissional da saúde. Eu nunca imaginei na minha vida – e são 25 anos de carreira – que o rumor e o boato seriam os principais impedimento da proteção da saúde das pessoas. A gente precisa fazer um investimento muito profundo para reconstruir a lógica da verdade e do conhecimento. Isso é crucial.
Em segundo lugar, a gente vai precisar passar por um processo de “desfascistização” – porque nós estamos vivendo um período neofascista no nosso país. Tudo o que nós vemos aqui de manifestações tem o signo do fascismo. A ideia do extermínio, a lógica do não-pensamento, do “ultra masculino”, a misoginia, o culto às armas, é como se fosse um checklist de tudo que é ser fascista.
Neste sentido, nós precisamos entender como essa luta contra o fascismo ocorreu em outros países. Eu acho que a Alemanha nos dá o principal exemplo ao valorizar a memória. Eles não esconderam nem ocultaram nenhum tipo de violência e foram até o limite da responsabilização dos culpados pela violência.
No Brasil nós fracassamos na virada da ditadura para a democracia ao não conseguirmos, como outros países latino-americanos, responsabilizar os crimes da ditadura. Agora nós vamos precisar agir muito firmemente para responsabilizar os autores de violências no país. Como diz a linguagem popular, “não dá pra passar pano”.
Um outro fator que eu acho muito importante é ampliar os espaços de convivência. Como a gente cindiu a nossa sociedade em dois polos, os pontos de contatos comuns estão muito reduzidos. Precisamos, portanto, reforçar os pontos de contatos que integram a nossa sociedade, e o investimento na cultura é fundamental para isso.
Eu sempre fui uma defensora apaixonada pelo processo da educação. Eu acho que a educação, sendo transformadora, pode mudar a história de uma nação, mas eu hoje tenho convicção de que é necessário reconstruirmos a nossa identidade nacional. Compreender qual vai ser o nosso elo enquanto identidade nacional para que a gente consiga estabelecer um princípio básico de nação. E, nesse ponto, nós teremos que enfrentar de frente o racismo, a extrema de desigualdade e outros temas como a cultura do estupro, da pedofilia, a violência contra a mulher, contra as comunidades LGBTs e todas as diferenças que nos constituem.
Edição: Jaqueline Deister