No dia seis de abril, o estúdio da Rádio Comunidade FM, em Santa Cruz do Capibaribe, município do Agreste Pernambucano, foi invadido por um grupo de quatro homens que se diziam apoiadores do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Além de interromper a programação da rádio, um dos invasores ameaçou e agrediu verbalmente o jornalista Junior Albuquerque.
Segundo o próprio Junior, que atua como comunicador há dez anos na região do Alto Capibaribe, antes mesmo do ocorrido, o agressor teria ameaçado ir até a rádio “tirar satisfação” após uma crítica feita pelo jornalista durante um programa anterior:
“Quando o país estava se aproximando de cerca de 300 mil mortes, eu fiz uma alusão histórica dizendo que Adolf Hitler não tinha culpa sozinho de todo o genocídio que aconteceu na Alemanha durante a Segunda Guerra. As pessoas que apoiaram ele, que fizeram vista grossa para tudo aquilo que estava acontecendo, também tinham culpa. Com isso, eu queria que os eleitores de Bolsonaro refletissem e começassem a criticar a política sanitária dele”, conta.


O jornalista lembra que, com pouco mais de 100 mil habitantes, Santa Cruz do Capibaribe foi a única cidade de Pernambuco em que Bolsonaro teve a maioria de votos no segundo turno das eleições de 2018.
Após a remoção do grupo pela equipe da rádio, o caso foi registrado junto à Polícia Civil, ao Ministério Público e alcançou repercussão nacional graças à rede de comunicadores locais que imediatamente publicizou a situação. Junior, que também é secretário de Comunicação em Taquaritinga do Norte, município vizinho à Santa Cruz, conta que desde então tem recebido apoio de parlamentares e comunicadores de todo país.
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Ainda que não tenha chegado a consequências mais graves, o caso de Santa Cruz do Capibaribe, aponta para uma questão histórica no Brasil: a vulnerabilidade de comunicadoras e comunicadores que atuam em cidades do interior do país.
De acordo com pesquisas e relatórios internacionais, como os feitos pela Artigo 19, organização não-governamental voltada para a defesa e promoção da liberdade de expressão, mais da metade das violações graves (homicídio, tentativas de assassinato e ameaças de morte) contra comunicadores no Brasil ocorrem em cidades com menos de 100 mil habitantes – o que corresponde a 5.243 municípios, ou, aproximadamente, 94% das cidades brasileiras.
Reconstrução da censura
Na opinião de Thiago Firbida, coordenador de proteção da Artigo 19, embora a violência contra comunicadores no interior do país não seja uma novidade, existe, hoje, um contexto inédito em que ela se manifesta e que a legitima.
Para ele, o Brasil tem experimentado “um projeto sistemático de deterioração da liberdade de expressão que corresponde, em última instância, à deterioração da democracia”.“O que acontece a partir de 2018, principalmente 2019, é que no nível federal, pela primeira vez, as autoridades de mais alto nível da República passam a, cotidianamente, atacar comunicadores”, aponta.
Firbida destaca que segundo o monitoramento da Artigo-19, nos dois primeiros anos de governo foram identificados cerca de 590 ataques contra a imprensa promovidos pelo Presidente da República, seus ministros ou seus filhos com mandatos parlamentares.
“É algo sem precedentes comparando com qualquer outro governo não importa a coloração ideológica ou partidária. Isso acaba legitimando essa violência local que não é nova, que é antiga, mas acontecia por conta de um contexto estrutural em que o poder instituído nessas localidades não sabe lidar com a crítica e com o olhar público que os comunicadores oferecem”, comenta.
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De acordo com Firbida, o país atravessa um processo de reconstrução da censura que, embora se assemelhe com a censura exercida na ditadura militar por ter como meta o silenciamento de expressões críticas ao governo, se diferencia pela maneira como opera e, sobretudo, pelos agentes que mobiliza.
“O que a gente percebe é que essas autoridades públicas articulam esses ataques com grupos de ‘seguidores sem face’. São cidadãos comuns que se articulam como seguidores desse projeto e se inserem numa estrutura muito organizada e bem financiada de desinformação para realizarem esses ataques. Isso gera não só uma hostilidade social geral contra o trabalho de comunicadores, mas uma hostilidade engajada. Ou seja, as pessoas não só desacreditam do trabalho dos comunicadores e sentem algum tipo de rejeição em relação a esse trabalho, elas se engajam no processo de violar diretamente, de agredir. Isso de fato é novo”, diz.
Vozes nos desertos
Firbida também chama atenção para o fato de que, ainda hoje, 62% dos municípios brasileiros seguem no contexto de “deserto de notícias”, isto é, não contam com cobertura jornalística local. Dado que, para ele, reforça a importância de garantir a segurança do trabalho de comunicadores comunitários e populares no chamado “Brasil profundo”.
“Esses comunicadores são fundamentais porque praticamente não existe fluxo de informação de interesse local. Essas questões só são cobertas por esses blogs e veículos de comunicação comunitária que estão nessas cidades. Por não existir veículos mais estruturados que façam essa cobertura local, são eles que se expõem tentando fazer uma cobertura, por exemplo, da política local, de questões policiais locais e da corrupção local que muitas vezes impacta diretamente os serviços públicos”, afirma.
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Ainda segundo o coordenador de proteção, para além das violações mais graves (ou no caminho até elas) existem outros tipos violações que não só intimidam e interrompem o trabalho, como chegam a interferir na vida pessoal dos comunicadores. É o caso, por exemplo, de Antônio Marques, comunicador comunitário de Tucuruí, no sul do Pará.
Com experiência de 30 anos de atuação em veículos locais, Antônio está inscrito na dívida ativa da União e pode ter a casa – seu único patrimônio – penhorada por conta de um processo sofrido em 2003, quando esteve à frente da Rádio Comunitária Alternativa FM, em Marabá. Sobre os desafios de trabalhar na região, ele explica que são mais complexos do que parecem à primeira vista e que a violência por vezes se expressa de outras formas além da física.
“Seja na rádio comunitária ou na privada o comunicador já é oprimido porque o salário é de miséria. E quem não tem formação ganha menos ainda. Tem gente trabalhando em rádio que não ganha nem salário mínimo. Para garantir o emprego, no casa das mídias privadas, eles fazem o que o patrão manda. É o patrão que diz o que eles tem que colocar na notícia. E quem se atreve a dar opinião, acaba sendo podado ou sofre a consequência”, ressalta.
Sobre os limites de atuação como jornalista no sul do Pará durante o governo Bolsonaro, Antônio é direto: “Eu estou nessa região aqui há muito tempo e já presenciei muito companheiro tombar. Não podemos abrir mão da nossa liberdade, mas, como diria o cidadão do interior, ‘cautela e caldo de galinha não faz mal a ninguém’”.