Esboçada ainda no final de 2018, logo após o resultado das eleições presidenciais, a discussão em torno da composição de uma frente ampla contra o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) tem ganhado cada vez mais destaque em noticiários e debates políticos ao longo dos últimos meses. Os escândalos revelados pela CPI da Covid-19 no Senado somados às articulações de partidos políticos dentro e fora do Congresso e, principalmente, às crescentes manifestações de repúdio ao presidente nas ruas têm conferido novos contornos e ingredientes ao tema.
Da formação de uma frente parlamentar por partidos de esquerda e centro-esquerda até o aceno de líderes da direita brasileira, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e a adesão do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de São Paulo aos atos públicos contra Bolsonaro, sobram polêmicas, dúvidas e desconfianças. Quais seriam os limites dessa frente ampla? Até que ponto é válida a união entre setores tão divergentes? Quais os reais interesses de cada grupo envolvido? Como administrá-los? Que riscos estariam inclusos nesse processo?
Para Clarisse Gurgel, cientista política e professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio), mais do que as eleições de 2022, as metas de uma frente ampla, hoje, deveriam ser: impedir o avanço das políticas de Bolsonaro e do grupo que o apoia e permitir que o povo brasileiro paute o Brasil que quer. Objetivos que, segundo a pesquisadora, demandam clareza sobre o caráter transitório da composição, a capacidade de pensar para além da lógica eleitoral e, principalmente, o estímulo constante à mobilização e organização das bases populares no país.
Processo histórico
Gurgel explica que, historicamente, as frentes amplas se caracterizam como composições provisórias. Como arranjos necessários a determinados grupos para derrotar ou superar um adversário ou obstáculo em comum. A pesquisadora destaca que, devido ao caráter provisório, tais alianças são frágeis e costumam se romper após atingirem o objetivo inicial ou mesmo por qualquer outra necessidade que surja ao longo do processo.
Como exemplo histórico, Clarisse cita o caso emblemático da Revolução Francesa no fim do século XVIII. Segundo ela: “Ali é uma experiência de frente ampla que, mais uma vez, resultou numa reviravolta. No que a gente chamou de golpe, que foi a recomposição da burguesia com a aristocracia da época justamente no momento em que a classe trabalhadora percebia que, para se chegar a um avanço histórico da humanidade, era preciso ir muito mais adiante do que as pautas que a burguesia apresentava”.
Leia mais: #19J: Organizadores de atos contra Bolsonaro projetam manifestações maiores e em mais cidades
Entre os fatores que dificultam a formação de uma frente ampa contra Bolsonaro no Brasil atual, a pesquisadora aponta para o fato de que nos últimos anos o país experimentou justamente o rompimento de uma outra frente ampla: a estabelecida entre setores da classe trabalhadora e da oligarquia nacional (representadas particularmente pelo agronegócio) durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Na análise da cientista política, a eleição de Bolsonaro resulta da ruptura dessa frente ampla. Ou melhor, de um giro dos setores conservadores para se descolar dos interesses da classe trabalhadora e se recompor junto aos interesses do capital financeiro internacional.
Portanto, para Gurgel, o primeiro passo para a composição de uma frente ampla no Brasil implica em ter clareza sobre os limites da frente como processo e instrumento político. “Isso não significa dizer que não se deve fazer frentes amplas, mas é preciso entender esses limites para demarcar o que é você e o que é o outro. O que é a classe trabalhadora e o que é a burguesia fazendo essa composição pontual”, afirma a professora.
Ela ainda salienta que, nesse processo, os setores populares devem ter consciência de que as frentes amplas devem ser provisórias também para eles. Ou seja, que devem ser construídas e mantidas enquanto atenderem aos seus objetivos, mas que podem (ou devem) ser dissolvidas a partir do momento que comecem a impedir o avanço de suas lutas.
Repensar o desenvolvimento
O principal desafio de uma frente ampla no atual contexto político e social brasileiro seria, portanto, promover um “giro estratégico” que permitisse ao povo brasileiro pensar o desenvolvimento do país. De acordo com Clarisse: “Isso significaria passar a olhar para dentro, para o próprio mercado consumidor, para a própria capacidade produtiva do povo brasileiro. Até o próprio agronegócio – e aí eu não posso ser romântica – assumir uma postura menos parasitária e entender que é preciso assumir um papel de desenvolvedor do país”.
Ainda de acordo com a cientista política, tal movimento exige dos setores que integram a frente ampla, sobretudo os ligados às camadas populares, a capacidade de extrapolar a lógica puramente eleitoral da composição e de manter suas bases sociais mobilizadas e organizadas. Uma tarefa que, na opinião da professora, tem sido assumida, por exemplo, pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo ao longo das recentes manifestações nas ruas. Nesse sentido, ela explica que o valor e o impacto dos processos de agitação e das mobilizações de denúncia não devem ser atribuídos tanto ao número de participantes ou às demonstrações de força, mas às formas de organização que começam a se consolidar nas ruas e podem, com o tempo, se expandir para patamares superiores.
Leia mais: Omissão de parte da mídia comercial na cobertura dos atos contra Bolsonaro é criticada nas redes
Gurgel reforça que a experiência da frente ampla, mais do que eleger um ou outro candidato, deve contribuir para o fortalecimento das organizações da classe trabalhadora no país e para o desenvolvimento das forças produtivas brasileiras. O que, segundo ela, poderia criar um contexto de construção de autonomia que permitisse à classe trabalhadora não ficar tão refém de frentes amplas, pois ao revigorar a organização popular: “as forças que produzem vão ganhando independência em relação a essas forças que estão do lado de lá e que transitam comodamente entre a classe trabalhadora e setores que são absolutamente parasitários como o capital financeiro”.
Alianças à direita
Sobre as polêmicas em torno de possíveis alianças entre organizações de esquerda e centro-esquerda com grupos de direita e centro-direita, a pesquisadora entende que a rejeição a estes tipos de composição pode ser atribuída à dificuldade de alguns setores “de entender que nós precisamos às vezes dar dois passos atrás para dar um para frente”.
Embora ressalte a importância de cautela em relação, por exemplo, à adesão de grupos conservadores às manifestações nas ruas contra Bolsonaro, Clarisse observa que, diferente de 2013, os atos deste ano têm se mostrado mais disciplinados e orgânicos. O que, segundo ela, lhes confere maior legitimidade e também imprime um caráter de domínio sobre o movimento que o previne contra tentativas de desvirtuá-lo.
Leia mais: Correios é a próxima estatal na mira da privatização
Além disso, a cientista política repara que mesmo entre grupos liberais e conservadores, existe hoje uma espécie de unidade em torno de um adversário comum.“O setor ligado a Bolsonaro é um setor facilmente identificável e claramente demarcado como algo que essa tal frente ampla, ainda muito pueril, ainda muito instável, já anunciou que não quer”, comenta.
Gurgel aponta também para outra reivindicação que tem unido a população brasileira, que é a superação da pandemia de Covid-19 e o retorno à vida social no país. Inclusive, na opinião da professora, essa pauta abre espaço para que o povo brasileiro discuta que tipo de sociedade deseja construir nos próximos anos e para que as eleições de 2022 deixem de ser apenas uma negativa e assumam um caráter de afirmação de um projeto para o país.
“Há uma pauta que pulsa no pulmão de muitos brasileiros. É essa pauta em torno da pandemia, em torno do desejo genuíno de todos voltarem a uma regularidade mínima de vida social. Porque, acima de tudo, o que se revelou como faltante pra nós é o outro, é o viver com outro. Isso é o que nos adoeceu. Então acho que isso nos convoca pensar o social. A sociabilidade que vai servir de fonte para o próprio pensar socialista” conclui.