Dezenas de policiais de diferentes estados do Brasil se reuniram, na última semana, em Natal, no Rio Grande do Norte, para participarem do 3º Congresso Nacional de Policiais Antifascismo.
Sob o lema “Por uma segurança pública, democrática, antifascista e antirracista”, o evento teve como objetivo refletir sobre possíveis vias de construção de uma nova política pública de segurança para o país.
Além de policiais civis, federais, rodoviários federais, militares, bombeiros, guardas municipais, policiais penais, agentes socioeducativos e demais trabalhadores do sistema de segurança pública, o congresso contou também com a participação de organizações e movimentos sociais como a Associação Juízes para a Democracia (AJD), a Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Também contribuíram com os debates personalidades como o sociólogo Jessé Souza, o economista Eduardo Moreira e a juíza federal Cláudia Maria Dadico.
Segundo o policial civil e um dos líderes do movimento, Pedro Chê, o Policiais Antifascismo possui, hoje, cerca de 500 membros em todo país. Entre as principais pautas defendidas pelo coletivo destacam-se: uma mudança drástica na política de drogas, com foco na redução de danos e na transferência da esfera da segurança para a saúde pública; a reforma do sistema penal brasileiro, com atenção especial às questões ligadas ao sistema penitenciário, como a superlotação e a própria finalidade do sistema; e a implementação da carreira única para policiais, semelhante ao modelo adotado nas polícias em todos os países do mundo, exceto o Brasil.
Ainda de acordo com Pedro Chê, tais medidas colaborariam para um serviço de segurança pública mais democrático e eficaz tanto para a população como para os próprios agentes. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 716 policiais civis e militares morreram de causas não naturais no Brasil em 2020. Do total, 51 foram mortos em confrontos em serviço, 131 em confrontos na folga, 50 cometeram suicídio e 472 foram vítimas de Covid-19.
Uma dura realidade que, segundo o representante do coletivo de policiais reunidos em Natal, é cotidianamente reforçada por uma espécie de “cultura militarizada” que confunde a população e os próprios agentes quanto a função social e os procedimentos da atividade policial.
Desmilitarização
Para Pedro Chê, a cultura militarizada entre as forças policiais vai muito além de instituições como, por exemplo, a Polícia Militar, e chega a distorcer, para os próprios servidores, o que seria o lema central da atividade policial: “servir e proteger”.
“Esse servir e proteger é distorcido enquanto conceito a ponto de quase negá-lo. Servir e proteger a quem? Alguns dizem ‘o cidadão de bem’, outros, ‘o Estado’. E, assim, perde-se a compreensão de que o trabalho policial, nesse contexto, é servir e proteger a toda a sociedade. Proteger dos crimes e infrações, mas sem autorizar outras infrações. Não é facultado ao policial cometer um crime porque está sendo cometido um crime. O pretérito não autoriza o presente com relação ao erro” explicou à Pulsar.
Segundo o policial civil, tal percepção acaba criando um afastamento e até suspeita por parte dos policiais em relação a instituições como o Ministério Público e o próprio Judiciário. “Então, para o policial, a lei é inimiga, o Ministério Público é inimigo, o Judiciário é inimigo, a imprensa é inimiga, os ‘direitos humanos’ é inimigo, a sociedade é inimiga. Ele só pode contar com ele mesmo e talvez com seus pares mais próximos”, acrescentou.
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Ainda como parte dos problemas gerados pela cultura militarizada, soma-se a imagem de herói muitas vezes atribuída aos policiais. Neste sentido, Pedro Chê alerta que os policiais são os mais prejudicados com isso, pois, conforme lembra, “o herói é uma figura disruptiva que, por natureza, extrapola o normal, rompe a lei, rompe o que é previsto”. Para ele, ao contrário, “o policial tem que lutar para ser um normal e fazer desse normal algo que seja mais saudável para si e para a população”.
Mudanças
Pedro Chê ressalta ainda que o Brasil tem o modelo policial mais hierarquizado do mundo, o que, para ele, é reflexo e também reflete na manutenção de uma das sociedades mais injustas do mundo.
“Você tem pouco arbítrio do policial para falar, para compor, para construir. O acesso a informação de gestão fica dentro dos cargos superiores. Não há nenhum nível de oxigenação, de influência, a não ser por parte de sindicatos e entidades associativas que, muitas vezes, tem muito mais preocupação e direcionamento para pautas corporativas do que para pautas relacionadas à eficiência do trabalho e à construção da segurança pública. Então fica muito complicado para o policial”, pontua.
Apesar das barreiras, o militante defende que é possível, sim, mudar a forma como operam e se organizam as forças policiais no país. Contudo, para isso, além do conhecimento técnico, teórico e empírico dos próprios policiais, gestores e pesquisadores, ele considera fundamental a participação da sociedade civil na construção e cobrança de políticas públicas. “É através da sociedade que ocorrerá a mudança, não internamente”, sublinha.
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De acordo com o policial civil, é importante, por exemplo, que os programas de segurança pública abordem a questão da prevenção aos crimes. O lado “menos custoso e mais eficiente”, segundo ele. Todavia, conforme destaca, a população deve estar atenta para que tais medidas não sejam reduzidas a “ações de publicidade” ou marketing social dos governos enquanto “uma série de outros programas muito mais robustos e culturalmente muito mais consolidados permanecem e não são alterados”, como é o caso dos programas de ronda tática que, segundo Pedro, contam com investimento maciço do Estado e alimentam o ideário de combate e repressão policial.
Participação social
Para o líder do Movimento de Policiais Antifascismo, a principal contribuição do coletivo neste cenário é esclarecer à sociedade civil como funcionam as polícias e o que acontece dentro de delegacias e batalhões para que ela seja capaz de “modificar e incidir nas instituições de forma a promover uma mudança drástica dentro do modelo de segurança pública brasileiro”.
“Eu penso que o que a gente pode fazer enquanto policiais, na ‘ponta do sistema’, é cumprir com o nosso trabalho, não adentrar nesse mundo ficcional relacionado à cultura policial, e emprestar o conhecimento que a gente tem para a sociedade para que ela possa ter uma clareza maior sobre o que ela quer da segurança pública e do que ela poderia ajudar a transformar na segurança pública”, concluiu.