Desde que foi divulgada a morte da cantora e compositora Elza Soares, na tarde da última quinta-feira (20), milhares de artistas e admiradores em todo o mundo têm ido às ruas e às redes sociais para prestar as últimas homenagens à “Mulher do Fim do Mundo”.
Para além das centenas de canções gravadas e do inquestionável talento da “Voz do Milênio” – título atribuído a Elza em 1999 pela emissora britânica BBC – as mensagens destacam o legado de coragem e determinação deixado pela cantora que, a plenos pulmões, afirmava em uma das canções de seu último álbum: “Eu não vou sucumbir!”
“Eu vou cantar até o fim”
Conforme divulgado pela família da cantora, Elza faleceu de causas naturais em sua própria casa, na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com Pedro Loureiro, empresário da artista, assim como nos versos de “Mulher do Fim do Mundo”, gravados em 2015: “Elza cantou, protestou e emocionou o mundo até o fim”.
Segundo informações da equipe da cantora, dois dias antes de morrer, Elza gravou um álbum e um DVD de memórias com grandes sucessos da carreira. Segundo informações da Folha de S. Paulo, o repertório é composto por 16 músicas e as gravações foram realizadas entre segunda (17) e terça-feira (18) no Theatro Municipal de São Paulo. Contudo, ainda não há previsão sobre o lançamento dos materiais.
Na quinta-feira, o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), decretou luto de três dias em homenagem à artista. O corpo de Elza foi velado nesta sexta-feira (21) no Theatro Municipal do Rio e o enterro foi realizado no cemitério Jardim da Saudade de Sulacap, Zona Oeste da capital. Na saída para o cemitério, o caixão da cantora foi coberto com uma bandeira do Flamengo, time de futebol pelo qual torcia, e da Mocidade Independente de Padre Miguel, sua escola de coração.
Em 2020, a cantora teve sua história narrada pela verde e branca em plena Marquês de Sapucaí com o enredo “Elza Deusa Soares”. Nas redes, a Mocidade fez questão de reverenciar sua estrela:
“Seu povo esperou tanto pra revê-la! E reviu! Reviu o seu amor Independente passar na Avenida da forma mais linda possível! Só podemos agradecer por tudo. Consternados! Essa é a nossa despedida! Obrigado, Deusa. NÓS NÃO VAMOS SUCUMBIR NUNCA!”, escreveu a agremiação.
“Planeta Fome”
Nascida em um sítio de Padre Miguel, na Zona Oeste do Rio, Elza da Conceição era neta de uma mulher escravizada teve uma infância pobre e antes de se tornar cantora, chegou a trabalhar como faxineira, empacotadora e doméstica. Casou-se obrigada pelo pai aos 12 anos e foi mãe logo aos 13. O sobrenome Soares veio do primeiro marido.
A primeira vez que Elza subiu em um palco foi na década de 1950, no programa “Calouros em Desfile”, apresentado por Ary Barroso na Rádio Tupi. Segundo a própria cantora, o que a motivou a procurar o programa foi o prêmio oferecido aos ganhadores, com o qual pretendia comprar comida e remédios para os filhos.
Além da vitória no concurso, o episódio ficou famoso pelo diálogo entre Elza e Ary. Ao se deparar com o figurino improvisado da então tímida cantora, o apresentador perguntou: “De que planeta você veio, minha filha?”. “Do mesmo que você, seu Ary. Eu venho do planeta fome”, respondeu Elza. Mais de 60 anos depois, em 2019, “Planeta Fome” veio a ser o título do 34º álbum gravado por Elza Soares.
Apesar do sucesso no programa, a cantora perdeu os dois primeiros filhos ainda na década de 1950. Elza perdeu também outros dois filhos em vida. “Garrinchinha”, filho único da cantora com o jogador de futebol Garrincha, foi vítima de um acidente de carro em 1986, aos 9 anos. Três anos após a morte do pai.
Gilson, o quarto filho da cantora, morreu aos 59 anos, em 2015, ano em que foi lançado “A Mulher do Fim do Mundo”, álbum que marcou o renascimento da já consagrada carreira de Elza Soares. Ao todo, a intérprete teve oito filhos.
“A grandeza possível do Brasil”
Com arranjos que vão do samba ao eletrônico e letras que tratam de temas como racismo e feminicídio, “A Mulher do Fim do Mundo” rendeu à Elza Soares o Grammy de melhor álbum de música popular brasileira em 2016. Versos como “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, da canção “Maria da Vila Matilde”, conquistaram não só a crítica nacional e internacional como toda uma nova geração de fãs que abraçou também os álbums “Deus é Mulher” (2018) e “Planeta Fome” (2019).
De acordo com Caetano Veloso, cantor, compositor e amigo pessoal de Elza, a artista “foi uma concentração extraordinária de energia e talento no organismo da cultura brasileira”. Fã da cantora desde a adolescência, Caetano destacou em suas redes sociais o poder de superação de Elza ao longo da carreira e seu justo reconhecimento nos últimos anos. Segundo ele, a amiga: “Morreu na glória a que fazia jus, numa idade respeitável, afirmando a grandeza possível do Brasil.”
Também através das redes sociais, a filósofa Djamila Ribeiro fez questão de reverenciar a vida daquela que considera “uma mãe para as mulheres negras”.
“[Elza Soares] Cantou as nossas potências, o nosso amor, dores e medos. A nossa fúria, tristeza, indignação. Do Planeta Fome, espalhou-se pelo mundo, rasgando como água indomável as cantigas existenciais das mulheres negras brasileiras. Junto a ela, fomos”, declarou a filosófa. E acrescentou:
“O nosso país é nosso lugar de fala. Elza sabia que sua existência seguia como uma pedra no sapato do país que foi obrigado a reverenciá-la, tamanho seu talento transcendental”.
A morte de Elza também foi sentida em âmbito mundial, com direito a destaque em veículos como o jornal americano The New York Times, o britânico The Guardian, a revista alemã Der Spiegel e o diário francês Le Monde.
Edição: Jaqueline Deister