O presidente Jair Bolsonaro (PL) publicou, na última quinta-feira (21), um decreto que concede perdão da pena ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a oito anos e nove meses de prisão por estimular atos antidemocráticos e ameaçar instituições como o próprio STF.
O benefício concedido pelo presidente foi publicado em edição extra do Diário Oficial da União, pouco mais de 24 horas após o julgamento do Supremo. Como justificativa, Bolsonaro usou o artigo 734 do Código de Processo Penal, que garante ao presidente da República o direito de conceder “espontaneamente” a graça presidencial.
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Além da prisão em regime fechado, a condenação do STF a Silveira – que ainda não possui trânsito em julgado, ou seja, as possibilidades de recurso não foram esgotadas – também previa a perda do mandato parlamentar e dos direitos políticos e multa de aproximadamente R$ 192 mil.
Para esclarecer as dúvidas quanto à legitimidade do ato de Bolsonaro, bem como as possíveis implicações jurídicas e políticas do decreto, a Pulsar Brasil conversou com a doutora em Direito Penal e professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ) Luciana Boiteux. Segundo ela, a “graça” concedida a Silveira representa mais uma afronta do presidente ao Poder Judiciário e pode gerar graves impactos em âmbito jurídico e na disputa política nacional.
Confira a entrevista completa a seguir:
Pulsar: Para começar, você poderia explicar o que é o indulto ou a “graça” concedida por Bolsonaro a Daniel Silveira e que efeitos ele pode gerar?
Luciana: O indulto normalmente é o indulto coletivo. A “graça” seria o indulto individual. Esses dois conceitos acabam se confundindo.
O efeito desse benefício é apenas o de impedir a execução da pena. Ele não tem o poder de extinguir o crime, a condenação e nem as consequências da condenação. Esse direito de graça, historicamente, era um ato do poder público para, de alguma forma, extinguir, diminuir ou comutar a pena.
Nesse sentido, é importante dizer que no decreto da “graça” – ou indulto individual – concedida por Bolsonaro, ele incluiu também os efeitos da sentença. Isso não é possível porque nós temos, inclusive, a súmula 631 do STJ [Supremo Tribunal de Justiça] que diz que o indulto deve afetar apenas o cumprimento da pena em si, e não as consequências da pena ou os chamados “efeitos extra-penais”.
Pulsar: Podemos dizer, então, que o decreto de Bolsonaro é legítimo?
O indulto concedido ao deputado Daniel Silveira, do ponto de vista formal, se não entrarmos no mérito, é uma medida (um decreto) de competência do Poder Executivo.
Então, o Bolsonaro, formalmente, não está extravasando as suas funções – embora a gente possa dizer também que tem um procedimento prévio à própria edição do decreto que parece não ter sido seguido aqui, que seria a própria defesa [de Daniel Silveira] solicitar.
Ainda sob o aspecto formal, temos um outro elemento que é de não existir ainda o trânsito em julgado. Tem sido colocado que Bolsonaro não poderia editar esse decreto antes do trânsito em julgado.
Penso que esse decreto do presidente foi antecipado. Mas esse mero argumento talvez não resolva o problema. O que pode-se dizer é que o Bolsonaro não poderia, formalmente, ter editado esse decreto antes do final do processo em relação ao Daniel Silveira.
A pergunta sobre legitimidade envolve a questão política também. É importante dizer que, do ponto de vista político, ele utilizou do instrumento legítimo, que é o indulto, para fazer uma afronta ao Poder Judiciário. Inclusive, na fundamentação ele indica que o Poder Executivo está discordando da interpretação dada pelo Supremo [Tribunal Federal]. O Supremo é o órgão do Poder Judiciário que tem a competência de dar interpretação às leis, não é Bolsonaro. Bolsonaro é Poder Executivo.
Cabe ao Poder Judiciário interpretar e julgar, e o Supremo é o último intérprete previsto no nosso sistema jurídico. Então cabe ao Supremo interpretar e não ao presidente da República dar a última palavra.
Pulsar: E em termos políticos, quais seriam as possíveis implicações do benefício?
Ele [o indulto individual] está calculado também para criar um fato político, e essa é a minha preocupação. Em especial porque temos aí exemplos internacionais de indultos concedidos a aliados e amigos do presidente da República, como, por exemplo, o [Donald] Trump, que concedeu indulto a Steve Bannon. O Bill Clinton também já concedeu indulto a um apoiador seu. No sistema norteamericano isso é comum.
Por outro lado, Bolsonaro também pode estar se utilizando – e isso eu acho que é um fato que a gente precisa levar em consideração na análise jurídica – de uma decisão anterior do Supremo que foi dada recentemente, em 2017 – um acórdão relatado pelo ministro Alexandre de Moraes –, que considerou que não caberia ao STF entrar no mérito do decreto de indulto e que seria, portanto, de competência do presidente da República e estaria sob sua discricionariedade [ liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei].
Isso foi no caso de um decreto de indulto do então presidente [Michel] Temer (MDB), que incluiu crimes do colarinho branco e permitiu serem beneficiados alguns condenados por crimes empresariais. E aí, nesse sentido, nós temos, hoje, uma decisão do Supremo que vai nesse caminho.
Pulsar: É possível reverter o decreto do presidente?
O debate agora vai ser colocado para o que o Supremo irá fazer. Ele pode, de alguma forma, seguir e não interferir, entendendo que é uma competência que está sob a discricionariedade do presidente da República, cabendo apenas corrigir em especial a parte que não caberia ao presidente – que é o efeito do indulto de alcançar os efeitos extra-penais.
Mas o Supremo pode, sim, entrar no mérito e enfrentar esse caso de frente. E aí a gente teria um julgamento que levaria em consideração a análise da constitucionalidade do decreto, o que levaria a um aprofundamento, em especial, da questão dos princípios da moralidade e da impessoalidade.
A minha única dúvida em relação a esse ponto é que por a “graça” ser equivalente ao “indulto individual”, de alguma forma ela vai ter sempre alguma questão específica da pessoa que está sendo beneficiada por esse indulto. Me parece que teríamos que ter algum cuidado e que o Supremo vai ter alguma dificuldade em relação a isso.
Por outro lado, caso seja analisada a fundamentação dada pelo presidente da República no decreto, que ele justificou com base na sua interpretação, divergente da interpretação do Supremo, aí abriria, sim, uma possibilidade do STF mesmo entender que houve abuso de poder do presidente da República na edição desse decreto e, portanto, revertê-lo.
A resposta final, então, é de que há, sim, a possibilidade do Supremo reverter esse decreto. Mas nós entraríamos numa seara de um tensionamento entre os poderes muito forte e, inclusive, da necessidade do Supremo justificar porque estaria mudando uma decisão anterior que entendia que não caberia ao STF entrar nesse mérito de um decreto de concessão de indulto pelo Poder Executivo.
Pulsar: A atitude de Bolsonaro pode ser interpretada como uma nova afronta do presidente e seus aliados ao Judiciário brasileiro?
Eu não tenho dúvidas que esse decreto de indulto é uma afronta ao Supremo e ao Poder Judiciário brasileiro, porque ele fez questão de colocar na fundamentação que o motivo do indulto seria que ele considera que Daniel Silveira foi perseguido por exercer seu livre direito de expressão.
A fundamentação do decreto de fato é uma afronta, é um ataque ao Supremo. E, para mim, deveria ser aberto um processo por crime de responsabilidade não só pela fundamentação desse decreto, mas pelo conjunto da obra de Bolsonaro até agora, que vem tensionando cotidianamente com o STF. Ele tem feito, na sua forma de governar, esse tensionamento buscando, sim, romper o equilíbrio entre os poderes, e isso é uma questão passível de responsabilização por crime de responsabilidade, portanto, passível de impeachment.
Eu entendo que é mais do que urgente que o parlamento também entre nesse debate. Já temos aí alguns Projetos de Decreto Legislativo (PDL) para sustar esse decreto presidencial. Eu acho que é importantíssimo politizar essa ocorrência. Não só tratar na perspectiva jurídica e atribuir ao STF esse papel, mas politizar essa questão dentro do Poder Legislativo.
É necessário o enfrentamento a essa e a reiteradas atitudes do presidente da República de ameaça à democracia. O que vai acontecer no Brasil a partir dessas eleições? A gente está vendo que Bolsonaro está se colocando diretamente em um enfrentamento à democracia e às instituições. Isso é muito grave!
Pulsar: Como fica a questão da participação de Daniel Silveira nas próximas eleições após a “graça” concedida pelo Executivo? Ele continua inelegível?
É uma situação complexa. Mas, para mim, o que é inquestionável é que o indulto individual, também denominado de “graça”, não poderia estabelecer esse alcance que ele [Bolsonaro] colocou, que é o de afetar os efeitos extra-penais, que são esses da perda do mandato e, em consequência, a sua inelegibilidade.
O máximo que o presidente da República poderia fazer ao conceder “graça” ou indulto individual a alguém é simplesmente impedir que ele seja preso. Ele não tem possibilidade e nem pode gerar esse efeito de também sustar efeitos extra-penais da sentença penal.
Pulsar: Que reflexos o embate entre o presidente e o STF pode ter no futuro da política nacional?
Eu queria registrar a minha preocupação com essa questão do equilíbrio entre os poderes. Hoje a gente está debatendo a situação de um decreto de Bolsonaro que a gente considera, no mínimo, imoral para beneficiar um aliado. Mas temos que pensar com muita cautela essa questão do alcance e da interferência dos poderes em situações como esta de um decreto presidencial de indulto ou “graça”.
A gente tem que tomar muito cuidado pois uma fundamentação que eventualmente uma Corte poderia interferir numa decisão de um presidente da República poderia se reverter, no futuro, no próprio desvirtuamento desse instituto do indulto e da “graça”. Eu acho que a delicadeza do caso está aí e o Supremo está sendo colocado em xeque. Por isso temos que ter muito equilíbrio na interpretação e entender todas as nuances. Eu espero que o Supremo possa ter a tranquilidade e o tempo para que possa haver uma resposta a esse ato do presidente da República.
Edição: Jaqueline Deister