“Por que e como estamos adoecendo diante da ignorância e do negacionismo?”. Foi a partir desta pergunta que as psicólogas Liliane Abreu e Natalia Sayuri deram início, em 2021, ao processo de pesquisa que resultou no livro “Complexo de Cassandra: O adoecimento do saber diante de uma sociedade alienada e negacionista”.
O livro foi lançado este mês pela Editora Sagarana e alude ao mito de Cassandra, da Grécia Antiga, para ilustrar o momento que o Brasil atravessa. Presenteada por Apolo com o dom da predição, Cassandra previu a destruição da cidade de Troia, mas ninguém lhe deu ouvidos. No livro, as autoras transportam o mito à Psicologia para ilustrar o cenário brasileiro “em que profissionais de diversas áreas, ativistas, cientistas e estudiosos em geral alertam a população por todos os meios possíveis e são desacreditados, assistindo à toda uma destruição que poderia ser evitada”.
Além do repertório teórico da Psicologia, a obra reúne entrevistas com médicos, enfermeiros, cientistas, professores, políticos e com negacionistas de vários perfis – terraplanistas, antivacinas e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Para saber mais sobre o livro e, principalmente, sobre as causas e impactos do negacionismo na sociedade brasileira, a Pulsar Brasil conversou com a psicóloga e uma das autoras do livro, Liliane Abreu. Na entrevista, ela comenta sobre os processos sociais que conduzem à alienação, os riscos do negacionismo para a saúde mental de milhares de pessoas no país e sobre o esforço coletivo necessário para interromper o “encadeamento de adoecimento” e a “regressão civilizatória” que o país atravessa.
Confira a entrevista a seguir:
Pulsar: De que maneira a psicologia pode nos ajudar a compreender o fenômeno do negacionismo como se apresenta hoje?
Liliane: A primeira coisa que todo mundo precisa entender é que nós somos seres biopsicossociais, ou seja, nós somos resultados de herança biológica de nossos pais, avós, antepassados, incluindo determinados demarcadores de doenças físicas e psíquicas que podem vir à tona ou não. Tudo isso pode ser evocado conforme a forma que nós vivemos em grupos e sociedades, isto é, conforme a maneira que cada indivíduo vai sendo moldado socialmente, inclusive pela família, que é o primeiro grande grupo primário.
Os processos alienantes não surgem do nada. Na história de todos os povos do mundo, quando você pega a mitologia da construção das religiões de cada sociedade, a gente pode ver claramente um enorme demarcador de controle social que vem através de medo, castigo, punição e que, inclusive, é direcionado mais especificamente às mulheres.
A mulher é usada como exemplo de controle, de mostrar para os outros indivíduos o que pode ocorrer se eles não acatarem o julgo. A partir disso, as coerções se estendem a outros grupos que são entendidos como menores: os pobres, os LGBTQIA+, os negros, os indígenas ou outra qualquer etnia que seja vista como “o diferente” em uma determinada cultura.
E aí, de tempos em tempos, surgem grupos de poderosos com padrões comportamentais que são incutidos e acatados pelas classes mais baixas e que vão reforçando as ações de exploração e de limpeza social.
Há uma espécie de grupo de controle, manipulação e de função destrutiva, que ganha grande aderência de pessoas que possuem reais adoecimentos psíquicos e de outras que não, mas que provocam potencialmente o sofrimento no restante da população que se mantinha de certa forma estável, com equilíbrio físico e mental.
Essas pessoas, por consequência, são conduzidas a sentirem um alto medo, frustração, desespero, angústia e até raiva. E esse tipo de sentimento é propositalmente reforçado pelo grupo de coerção para tentar fazer com que o grupo atingido tenha uma reação. É assim que os massacres, por exemplo, são justificados.
O silenciamento, as violações, as mortes existirão “de qualquer forma”. Quem assiste a isso e tenta de alguma forma reagir, mesmo que de forma controlada, é atacado. E isso pode ocorrer de várias formas para que essa pessoa seja desqualificada e não possa agir para interromper a escalada de barbárie.
Nesse contexto, todos nós estamos sendo destruídos de várias formas e sendo conduzidos à total falta de esperança, que é o que leva muitas pessoas a desistirem, inclusive, delas mesmas e a pararem de se importar com o outro. Isso tudo é muito perigoso.
Pulsar: O negacionismo pode ser considerado uma psicopatia? De que maneira ele tem afetado a saúde mental das pessoas e da sociedade em geral?
O processo de alienação e de negacionismo pode atingir qualquer pessoa. É importante frisar que todos nós fomos, somos ou teremos algum nível de alienação que pode impulsionar a negação de um fato comprovado. Existem diversos níveis e tipos de negação, e às vezes eles podem ser desencadeados até por medo.
São contextos multifatoriais. Pode ser por educação sócio-familiar, por crenças, por aspectos de condução traumática, e até mesmo por tipos diferenciados de adoecimentos psíquicos. Só que se a gente levar pra esse lado da psicopatologia, tudo começa a ficar mais delicado.
Ser negacionista não torna ninguém psicopata. Mas o que nós podemos adiantar é que existem pessoas que provocam, sim, o caos.
E essas pessoas não necessariamente alcançam um nível alto de transtorno antissocial, que é a psicopatia. Elas podem ou não ter esse agravamento, mas elas lançam a desestabilização e outros tantos abraçam isso e propagam em massa. Nesses casos, como eu disse, tem uma série de explicações. É multifatorial.
O mais importante é que as pessoas, de modo geral, entendam que a compreensão desses caminhos e conduções não é para sair patologizando os outros e gerando novas categorias de preconceito – e as pessoas tendem a fazer isso.
Pelo contrário, entender esses caminhos se faz necessário para a união colaborativa da sociedade, para poder acolher todo mundo, para poder ajudar em cuidado e educação o máximo de indivíduos, para que esse quadro tenebroso e crescente que a gente está assistindo seja interrompido. Porque enquanto as pessoas continuarem sem atenção, o encadeamento de adoecimento um do outro vai permanecer e vai continuar se propagando exponencialmente em uma espécie de regressão civilizatória. E é justamente isso que a gente tem assistido.
Pulsar: Com base nas entrevistas que vocês fizeram para o livro, existe algum padrão de comportamento entre as pessoas negacionistas?
Aí depende do nível e da tipologia. Se nós formos pegar, por exemplo, uma pessoa dentro de uma certa “normalidade” (vamos abrir aspas para essa normalidade!), por ser mais turrona ou até ter um determinado patamar de educação sociocultural, ela pode mudar, se assim se permitir, e começar a contestar certas inconsistências ao redor dela.
Mas há extremos muito grandes e até gritantes em que, mesmo que algo esteja acontecendo com a pessoa ou com alguém próximo, ela tenderá a continuar alegando que todos estão errados, que não tem nada acontecendo e, ainda por cima, ela pode, sim, criar novas retóricas sobre algo que já foi comprovado, provado e que é irrefutável. O que é o negacionismo puro, né?
No livro, nós trouxemos um trecho de Dom Quixote para explicar exatamente esses comportamentos alucinantes de ver coisas onde elas não existem, da pessoa não conseguir identificar reais perigos. Nós trouxemos isso para explicar como surge a esquizofrenia e o que é a psicose. E não só isso! Nas neuroses, por exemplo, se for uma neurose muito grave, o indivíduo tende a querer bajular o outro o tempo todo. Então ele vai criar um comportamento de fazer tudo que mandam a ele. Ele quer agradar aquela figura.


Nenhum desses dois exemplos é da psicopatia. É do que nós chamamos de “perversos”, dentro do quadro dos perversos que têm um transtorno agravado.
No livro nós temos uma sessão só para explicar isso. Tem a parte da historicidade, dos acontecimentos atuais, mas a gente precisava redigir, de uma forma mais simplificada, determinados conceitos da psicologia para que o leigo da psicologia possa entender essas construções.
Por que, por exemplo, uma mulher é rotulada, de forma misógina, como histérica para ser desqualificada; por que um cara não toma vacina por achar que tem chip ou vai ter autismo. por que um presidente da República imita alguém morrendo sem ar e tem um medíocre que vai achar graça disso; por que professores e enfermeiros e outros profissionais e afins estão ficando depressivos e desistindo da própria profissão. Tudo isso é multifatorial e, na construção dos comportamentos, o fator psicológico e psicopatológico é muito gritante.
Pulsar: Existe algum “antídoto” para o negacionismo? Quais seriam os possíveis caminhos ou estratégias para reverter o atual quadro de alienação que enfrentamos hoje?
Nós precisamos ser bem sinceras e realistas: o quadro é calamitoso. Vai levar muito tempo para se arrumar a casa – e isso no cenário mais otimista e utópico, se não tivesse ninguém fazendo queda de braço contra.
Será preciso um esforço colaborativo e multiprofissional para atuar muito pontualmente na educação e na saúde mental da população. Educadores, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais vão ter que gerar esforços de diálogo e atuação.
Porque não é apenas focar em melhorias para o ensino e para as escolas. As crianças e os adolescentes, por exemplo, estão dando com o dedo na cara dos professores e dizendo que é opinião deles e que o Galileu estava errado e a terra é plana e pronto. Que o pastor, o pai, a mãe, o tio, sei lá quem, disse que a terra é plana mesmo e a professora é comunista e pronto. É isso que eles estão falando. E isso está criando, inclusive, um desgaste nos professores e a desistência da continuidade de cátedra.
Nós observamos nas pesquisas que os adultos que assessoram essas crianças, na maioria, estão criando “uma escola paralela” pela internet. Eles dizem que é uma escola nova e são embasados com todo tipo de de teoria da conspiração alucinante e coisas estapafúrdias. Escritores negacionistas vão vendendo milhares de livros e validando-se entre si. Então tudo é muito grave.
As instituições profissionais sérias e políticos com poder de colaborar no restabelecimento das humanidades – que nós temos e precisamos reestabelecer no país – precisam criar formas de alcançar e acolher quem está desassistido, mas também de olhar para essas pessoas, para esses negacionistas.
É necessário começar a pensar como reeducá-los, como tirá-los do processo alienante através, por exemplo, de acolhimento psicológico e educativo de várias formas. É preciso começar a pensar como ensinar as pessoas a repensarem a mudança de práticas que são preconceituosas e que as aprisionam exatamente nesses processos alienatórios.
Então o primeiro passo é nós entendermos o que nós estamos vivendo. De onde vem isso e o porquê. É preciso fazer isso! A partir dessa ordenação inicial e da união de todas as pessoas e profissionais de boa vontade, nós vamos poder traçar novos caminhos.
Caminhos que não vão ser nada fáceis, pelo contrário, vai ser difícil, vai ser tudo muito difícil. Mas é tudo muito urgente também e é necessário se começar de algum lugar. E tudo começa pela educação.
Edição: Jaqueline Deister