No último domingo (30), mais de 60 milhões de brasileiros e brasileiras elegeram Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para ocupar a presidência da República pelos próximos quatro anos. Com o resultado, Lula se torna o presidente mais votado da história do país e será o único político a assumir, por via democrática, o cargo de presidente por três vezes (2002, 2006 e 2022).
Em votação apertada, o petista teve 50,9% dos votos válidos contra 49,1% do atual presidente Jair Bolsonaro (PL). O ex-capitão, por sua vez, também entrou para a história das eleições brasileiras ao ser o primeiro presidente a não conseguir se reeleger desde que a reeleição passou a ser permitida no país, em 1997.
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Em entrevista à Pulsar, o cientista político José Marciano comentou sobre tais marcos e analisou alguns fatores e características que marcaram a disputa presidencial nas eleições deste ano, como a construção de alianças políticas, a disputa nas diferentes regiões do país e a retomada da pauta econômica e social frente a pauta “de costumes” explorada pelo atual chefe do Executivo.
Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), José Marciano também pontuou alguns dos desafios colocados para a gestão de Lula a partir de 2023.
Confira a entrevista a seguir:
Pulsar Brasil: No segundo turno das Eleições 2022 nós tivemos uma das maiores votações da história e, ao mesmo tempo, a vitórias mais apertada no percentual de votos válidos para presidente da República. Como você analisa esses resultados?
José Marciano: Desde janeiro nós já tínhamos um processo de campanha polarizado entre Bolsonaro e Lula. Essa polarização se refletiu claramente na expressão maior do voto e na forma como o país sai das urnas.
Muitos afirmavam que era possível a construção de uma terceira via, mas o que se demonstrou na prática é que a campanha se polarizou em torno de dois líderes que tinham a experiência administrativa. Então o julgamento que a sociedade fez, foi o julgamento das administrações feitas por esses dois governantes, elegendo Luiz Inácio Lula da Silva.
Agora, é interessante observar que, para além de ser uma das mais acirradas eleições da República, esta eleição também tem alguns marcos.
Primeiro, é bom destacar que Bolsonaro foi o primeiro presidente que, tendo o instituto da reeleição, não conseguiu se reeleger. O instituto da reeleição foi criado em 1997, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. O próprio FHC fez uso desse instituto e conseguiu ser reeleito em 1998. Posteriormente você tem a eleição de Lula em 2002 e a reeleição em 2006. Dilma Rousseff, eleita em 2010, da mesma forma, conseguiu ser reeleita em 2014.
Outra característica importante dessa eleição é que nós temos pela primeira vez também no regime democrático – e, por conseguinte, em uma república – um presidente sendo eleito pela terceira vez.
De toda história política brasileira, podemos dizer que ele é o segundo a ocupar o mandato por três vezes. Nós temos Getúlio Vargas, que foi eleito na década de 1950 e que antes havia sido eleito em 1930 e 1945, mas não em uma configuração democrática como nós temos atualmente. Lula é o primeiro presidente na história do país a ser eleito por três vezes em um regime democrático.
Outro ponto importante é que Lula consegue pela primeira vez que um ex-presidente dispute com o atual mandatário construindo um amplo arco de aliança, envolvendo aí aproximadamente 10 partidos e lideranças políticas que vão desde aquilo que nós chamamos de centro-esquerda à esquerda e ao espectro ideológico da centro-direita. Você tem aí uma aliança ampla inédita e que provavelmente vai repercutir também no que diz respeito à governabilidade.
Pulsar: Além desses marcos históricos, que ouras características você destacaria em relação a eleição deste ano para presidente? E o que os resultados deste ano revelam sobre o eleitorado brasileiro?
É importante trazermos aqui algumas variáveis para essa análise. A primeira é a renda, que, a meu ver, nos permite compreender também a lógica do conflito distributivo que existe em nosso país e pensar a lógica das classes.
As camadas populares majoritariamente votaram com Lula, tendo em vista a própria crise econômica pela qual passa o país. Nesse aspecto, neste ano a agenda “de costumes”, embora seja uma agenda que prevaleceu na eleição de 2018, não teve tanta força a ponto de se traduzir na vitória de Bolsonaro.
Na minha opinião, diante da crise econômica pela qual passou o país, a estratégia de Lula de trazer o debate sobre geração de emprego e o aprofundamento das políticas de proteção social foi, do ponto de vista tático, muito mais exitosa do que a de Bolsonaro, que se ancorou novamente na pauta de costumes – que foi o que garantiu não só a vitória dele em 2018, mas também que ele pudesse governar ao longo dos últimos anos. Ou seja, nós temos um uma agenda econômica que foi muito mais bem aceita. Basta atentarmos para o que expressam os dados de votação por região.
Se nós compararmos com o que aconteceu em 2018, nós vamos perceber que Lula, em relação a Fernando Haddad, teve mais de sete milhões de votos na região Sudeste. No centro-oeste, Lula também teve mais de 928 mil e no Norte aproximadamente 655 mil. No Nordeste Lula também amplia isso em relação a Haddad em 2018, tendo 2,2 milhões de votos. O mesmo se repete no Sul, onde a margem de Lula cresce para 1,6 milhão de votos.
É importante trazer esses dados para não ficarmos na análise simplória que diz que a vitória foi dada apenas pelo Nordeste. Não é bem assim.
O Nordeste, de fato, expressou majoritariamente uma tendência que já vinha sendo expressa em relação ao lulismo. Mas com a crise econômica e a gestão de Jair Messias Bolsonaro, o “antipetismo” – muito forte em 2018 – diminuiu permitindo que Lula pudesse crescer nas demais regiões.
Quando a gente compara a eleição de Bolsonaro na região Sudeste em 2018 e agora em 2022, percebemos que ele perdeu em torno de um 1,3 milhão de votos. Ele ganha um pouco no Centro-Oeste e no Norte, mas perde 144 mil votos no Sul. É preciso olhar essas dinâmicas para não fazermos uma leitura simplória a ponto de afirmarmos que foi tão somente o Nordeste que garantiu a vitória de Lula.
Pulsar: Na sua opinião, quais devem ser os principais desafios enfrentados por Lula em seu terceiro mandato?
Em termos de governabilidade, um dos principais desafios será a construção de maioria no Congresso Nacional. É preciso que Lula amplie sua capacidade de articulação para que possa garantir a governabilidade e, assim, possa implementar as políticas públicas que deseja.
O maior desafio é: como construir maioria sem o chamado “Centrão”?
Eu não acredito que seja possível construir essa maioria sem o “Centrão”. Só com os partidos da esquerda e centro-esquerda nós não teríamos a maioria. A própria eleição expressa isso e sinaliza para um arco de alianças que, creio eu, deve se refletir no Congresso Nacional, haja vista que quando, no segundo turno, o PT recebe o apoio do PDT, isso já aponta que o PT vai dialogar com o PDT no sentido de ser base no governo. Da mesma feita podemos entender com o próprio MDB de Simone Tebet.
Sabe-se que no Nordeste parte significativa do MDB já foi para Lula desde o primeiro turno. Mas temos outras regiões em que o MDB não estava com o Lula. Então eu acredito que haverá uma costura no sentido de trazer o MDB também para a base governista, ou pelo menos setores do MDB. O próprio PSD, que tem [Alexandre] Kalil à frente em Minas Gerais, também poderá ser base em uma aliança para garantir a governabilidade.
Geraldo Alckmin (PSB) também desempenhará um papel importante nesse aspecto trazendo figuras do PSDB para essa base – além, é claro, do PSB, partido do vice-presidente. O Alckmin teve uma inserção histórica no PSDB e, consequentemente, creio que ele irá ampliar essa aliança muito mais ao centro.
Agora, em termos de desafios para a gestão, nós temos alguns problemas que vão ser muito caros ao povo brasileiro e que têm a ver com a forma como o atual governo usou a máquina pública com, por exemplo, benesses sendo liberadas em pleno período eleitoral. Isso com certeza vai aumentar o déficit público do país.
Lula terá um grande desafio para colocar a “máquina” do Estado em prol das políticas públicas, afinal: não se faz política pública se você não tiver de onde tirar os recursos. E nós sabemos que a verba direcionada pelo governo ao orçamento secreto e às ações no período eleitoral foram na ordem de bilhões. A meu ver, este também é um importante desafio colocado para o próximo presidente.
Edição: Jaqueline Deister