“Ainda faz sentido falar de Paulo Freire nos dias de hoje?”. “De que maneira a obra e o pensamento de Freire podem nos ajudar a enfrentar os desafios da era digital?”. Essas são algumas das perguntas que inspiraram o livro “Esperançar com Freire – Reflexões sobre comunicação e mudança social”, lançado em agosto pelo Instituto Ubíqua em parceria com o Instituto de Mídia e Indústrias Criativas da Universidade de Loughborough, em Londres.
Editada e organizada pelos pesquisadores Ana Cristina Suzina e Thomas Tufte, a obra reúne textos de autoras e autores de 11 países, como Anita Gurumurthy, da Índia; Karin Wilkins, dos Estados Unidos; Eriberto Gualinga, do Equador; Linje Manyozo, da Austrália; e Colin Chasi, da África do Sul.
Do Brasil, o livro conta com as contribuições do frade e escritor dominicano Frei Betto, o ativista e escritor indígena Ailton Krenak e a pesquisadora e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Mayrá Lima, além do presidente do Instituto Ubíqua, Jessé Barbosa, que assina o prefácio da coletânea.


De acordo com os organizadores, a obra foi produzida a partir das reflexões compartilhadas durante o seminário online “Centenário de Paulo Freire – 7 conversas para inspirar os próximos 100 anos”, realizado em 2021, ano em que o pensador completaria 100 anos. Segundo Ana Cristina Suzina, longe de qualquer saudosismo, o evento – e agora do livro – busca justamente debater a pertinência e relevância do pensamento freiriano diante dos dilemas das sociedades atuais e futuras.
“A gente teve cerca de mil participantes de mais de 40 países no seminário e todas as pessoas que estavam ali não tinham dúvidas de que a obra de Freire tem uma relevância histórica. Existia um reconhecimento de que ela foi e continua sendo importante para as sociedades. Mas a gente propôs fazer sete conversas no marco dos 100 anos do nascimento de Freire para pensar os próximos 100 anos”, explicou a professora à Pulsar.
Perguntas
Segundo Suzina, mais do que respostas, o livro apresenta uma série de perguntas e questionamentos sobre a relação das ideias freirianas com o mundo atual. Para ela, é precisamente o “ousar se perguntar” que faz com que o pensamento do chamado “patrono da educação brasileira” se renove a cada geração.
“O pensamento de Freire é isso, é essa abertura constante a se renovar, a se refazer, a se atualizar e eu acho que é dessa maneira que o livro atualiza a obra de Freire: atualizando as perguntas. Porque ao nos fazer essas perguntas é possível que nós encontremos as respostas sobre a maneira como a gente pode intervir e transformar o mundo”, afirmou.
Questionada sobre por que a obra de Paulo Freire continua relevante para tantas pessoas mesmo diante das diversas e profundas transformações ocorridas nas últimas décadas, Suzina pontua:
“Ela continua relevante porque a opressão ainda está presente, porque ela nos provoca a fazer as perguntas que precisam ser feitas e porque ela nos aponta um caminho de esperança. Ela se articula bem com o princípio da denúncia e do anúncio. Ela denuncia a opressão, mas ela fala de esperança, ela fala de amor. Ela nos coloca em marcha. Não é uma obra pessimista. É uma obra crítica”.
Educação pela Terra
Em entrevista à Pulsar, o ativista indígena Ailton Krenak, que participa do livro com o artigo “Comer, beber, dançar, cantar e suspender o céu”, também destacou a importância de se propor um novo olhar sobre a obra de Paulo Freire. Segundo ele, mesmo com todo o prestígio de que goza, o pensamento freireano não deve ser tomado como “uma estrutura monolítica, uma estrutura que deve ser reverenciada”.
Para Krenak. é preciso convidar as pessoas “a pensar sobre como aplicar esses ensinamentos que o mestre Paulo Freire nos legou em um tempo em que o mundo do trabalho está se esvaindo às nossas vistas”.
“Paulo Freire pensou o século 20 e nós estamos no século 21. Ele pensou o mundo de fábricas e trabalhadores do campo. A ideia de cidadania, de instruir o cidadão para que ele possa decidir e determinar o caminho que a sociedade vai seguir foi uma ideia muito cara nos séculos 19 e 20, mas no século 21 ela se esvaiu” disse à reportagem.
De acordo com Krenak, ao invés de “preparar as pessoas para uma espécie de maratona na vida”, o processo de educação deve reconhecer as diferenças e “semear a igualdade a partir do campo da diversidade”. Neste sentido, o autor chama atenção para o que ele chama de “educação pela Terra”.
“A Terra nos educa pela paisagem, pelas mudanças que acontecem em cada estação do ano, ela nos educa para a vida no sentido de fruição da vida. Ela não nos prepara para competição. Ela nos prepara para a vida. Essa experiência implica em uma cosmovisão, uma coisa maior do que o que a gente chama de educação. Porque às vezes, nós trabalhamos uma ideia da educação como uniformidade, como monocultura, e a vida é biodiversa, ela não é uma monocultura”, afirmou.
Conexão humana
Com mais de 10 anos de atuação com a formação de comunicadores e comunicadoras populares no interior do Nordeste, o presidente do Instituto Ubíqua, Jessé Barbosa, ressalta que o livro “Esperançar com Freire – Reflexões sobre comunicação e mudança social” traz aquilo que ele considera “o mais importante na obra de Paulo Freire”: a diferença que ele traça entre ação dialógica e ação antidialógica.
Segundo Jessé, enquanto a ação antidialógica considera que as pessoas precisam ser manipuladas ou segregadas para serem conquistadas, a ação dialógica tem como base a colaboração, a união e a organização para a síntese cultural.
“A ação dialógica parte do princípio de que todas as pessoas já carregam consigo algum conhecimento. Que todas as pessoas sabem ler a sua realidade, nisto elas já são alfabetizadas. Para Freire, como as pessoas já sabem ler a realidade, elas precisam aprender a ler a palavra a partir da sua própria realidade e quando sabem ler a palavra e aplicam os conhecimentos a sua realidade a transformação acontece”, explicou à Pulsar.
De acordo com o comunicador, toda a metodologia do Instituto Ubíqua – tanto a parte educativa quanto a parte comunicacional – é baseada e enraizada na ação dialógica de Freire. Por isso, e também por possuir uma ampla capilaridade no Nordeste, especialmente na região do semiárido, o instituto foi convidado pela Universidade de Loughborough, em 2021, para mediar o seminário que deu origem ao livro.
Neste ano, o trabalho desenvolvido pelo Instituto Ubíqua com base na pedagogia freiriana lhe rendeu, inclusive, o Prêmio LED 2023 – Luz na Educação na categoria “empreendedores e organizações inovadoras”.
“O propósito do Instituto Ubíqua é promover a comunicação colaborativa e solidária e ampliar o acesso das pessoas a esta comunicação através da aprendizagem ubíqua. Por isso, todas as nossas ações servem para dizer que a conexão digital só faz sentido e só tem alguma relevância quando promove a conexão humana”, destacou Jessé.
Esperançar
O livro “Esperançar com Freire – Reflexões sobre comunicação e mudança social” pode ser adquirido a preço de custo na página do Instituto Ubíqua. A obra também pode ser baixada gratuitamente na versão PDF.
Edição: Jaqueline Deister