Na última semana de sessões da CPI da Covid-19, representantes de organizações de defesa dos direitos humanos entregaram ao relator da Comissão, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), um estudo em que mais de 30 pesquisadores de diversas áreas do conhecimento avaliam a atuação (e omissão) do governo federal durante a pandemia no país.
O levantamento aponta que, desde a chegada do vírus ao território nacional, o Estado brasileiro teria cometido uma série de violações aos direitos humanos, em especial aos direitos à saúde e à vida. Ainda segundo a pesquisa, entre março de 2020 e agosto deste ano mais de 460 mil mortes por Covid-19 poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse assumido uma postura responsável diante da pandemia.
O encontro com Calheiros contou com a participação de representantes da Articulação para Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil (AMDH), do Fórum Nacional de Defesa do Direito Humano à Saúde, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
De acordo com Paulo César Carbonari, da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), uma das redes que compõe a AMDH, o estudo foi entregue ao senador para que sirva de subsídio ao relatório final da CPI. Segundo ele, o material apresentado a Calheiros é uma prévia de um documento ampliado que será apresentado nos próximos meses a mecanismos internacionais de direitos humanos da Organização das Nações Unidos (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Ainda de acordo com Carbonari, o documento foi “muito bem recebido pelo senador”, que destacou o novo olhar que o estudo traz sobre as ações e omissões do Estado brasileiro no enfrentamento da pandemia.
“Ele comentou que essa abordagem específica e esse olhar para a situação, com a lente dos direitos humanos, se constituía numa nova forma de fazer a leitura dos fatos. Na Comissão, já havia sido apresentadas e debatidas abordagens mais da ordem penal, da ordem jurídica e constitucional, mas ele [Renan Calheiros] ainda não tinha uma abordagem que olhasse a situação com esse crivo, com essa lupa. Então, ele recebeu bastante entusiasmado e confirmou que a contribuição certamente fará parte do relatório final da CPI”, informou o coordenador do MNDH.
“Feminicídio de Estado”
Dentre as diversas análises e denúncias que compõem o estudo, chama a atenção o parecer da advogada, pesquisadora e ativista de direitos humanos, Soraia Mendes, que acusa o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) de praticar o crime de feminicídio de Estado.
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Com 15 anos de experiência em defesa dos direitos humanos das mulheres, Soraia explica que o conceito de feminicídio de Estado é, de certa forma, inovador e parte de um processo de interpretação e compreensão da norma disposta no Código Penal brasileiro.
“A nossa legislação diz que é feminicídio quem mata uma mulher pela misoginia, pelo ódio que tem ao feminino, pelo desprezo que tem ao feminino, pela discriminação ao feminino. E aí a gente começa a fazer as conexões com todas as atitudes que comprovam as ações e omissões do Estado que provocaram todas essas mortes que temos no Brasil. Mas, muito especialmente, uma ação dirigida de forma a desprezar a condição feminina que faz com que alguns grupos especificamente de mulheres tenham sido atingidos de forma marcante. E aí nós temos as mulheres trans, as travestis, as quilombolas, as indígenas e até mesmo as gestantes e parturientes”, afirma a advogada à Pulsar Brasil.
Em relação às transsexuais e travestis, a pesquisadora destaca no estudo que as negativas de acesso às políticas públicas emergenciais e a precarização das condições de trabalho nas ruas fez com que estes grupos estivessem muito mais expostos ao vírus. Já em relação às grávidas e puérperas, Soraia toma como referência os dados do Observatório Obstétrico da Covid que colocam o Brasil entre os líderes de mortes de gestantes e puérperas durante a pandemia.
Por fim, no caso das mulheres quilombolas e indígenas, Mendes afirma existir “um conjunto de não ações que fizeram com que morressem mais mulheres quilombolas e indígenas”. Além dos ataques aos direitos dos povos tradicionais promovidos pelo Executivo – seja através do presidente ou de seus ministros –, a ativista relembrou episódios em que o presidente da República demonstrou seu desprezo a indígenas e quilombolas, como quando disse que quilombolas poderiam ter o peso comparado em arrobas ou quando disse que “o índio está evoluindo, e cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”.
Para Soraia, não há dúvidas de que Jair Bolsonaro tem responsabilidade direta pelas mortes de milhares de mulheres no país. Não apenas pelas declarações misóginas que faz ao se referir às questões de gênero, mas sobretudo pela ausência de políticas públicas voltadas para as mulheres.
Neste sentido, ela reforça que o femincídio do Estado corresponde não só às ações diretas, mas também às ações indiretas e às omissões de agentes públicos que, “querendo o resultado diretamente ou assumindo o risco de que aconteça, causam a morte de mulheres”.
“O dar de ombros do presidente da República quer dizer ‘pouco me importa se vai morrer’. Se você for para uma aula de Direito Penal, essa é exatamente a figura que eu uso, há 15 anos, para explicar o dolo eventual. O dolo eventual é aquela situação em que o agente dá de ombros: ‘Ah, se morrer tudo bem. Se morrer, azar’. Isso é dolo eventual. O agente assume o risco de que o resultado aconteça. E, nesse caso, o resultado é a morte”, conclui a advogada.
Edição: Jaqueline Deister