“Lutar por justiça, defender a memória, multiplicar o legado e regar as sementes”. Foi pautado nesses objetivos que o Instituto Marielle Franco (IMF) lançou esta semana a revista em quadrinhos “Marielle Franco – Raízes”. A HQ resgata as origens e os primeiros passos da caminhada de Marielle durante a infância e adolescência no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. O lançamento da revista foi realizado na terça-feira (27), dia em que a vereadora completaria 42 anos.
Voltada para crianças e jovens, a revista foi escrita, desenhada, colorida e diagramada por um time de profissionais negros e está disponível para download no site do IMF. Para falar sobre o lançamento da HQ, a Pulsar Brasil conversou com Marinete da Silva, mãe de Marielle. Além de contar sobre o processo de produção da revista, a advogada também comentou sobre o trabalho do Instituto, as novidades em relação às investigações do caso e os desafios da família para manter vivo o legado deixado pela filha.
Confira a entrevista a seguir:
Pulsar: Como surgiu a ideia de criar uma revista em quadrinhos?
Marinete: A ideia de fazer a HQ começou lá em 2018. Foi uma ideia que a Ani [Anielle Franco – irmã de Marielle e diretora do IMF] teve. Ela trabalhava como professora e pensou num jeito para poder contar a história da Marielle para as crianças e jovens. Essa ideia virou um projeto que foi amadurecendo com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo e da Fundação Lauro Campos.
A gente fez essa HQ porque é importante que as pessoas conheçam a história de Marielle, as raízes dela, de onde ela veio, as memórias da nossa família. A história da minha filha é uma história mais que especial e se tornou um símbolo para muita gente. Para você ter uma ideia, já devem ter mais de 10 ou 11 assentamentos com nome da Marielle espalhados pelo Brasil. Tem crianças com o nome dela. A ideia da HQ é dar esse acesso mais direto à história da minha filha.
Nós colocamos a HQ no site do Instituto, mas também teremos a versão impressa. A gente deve receber uma quantidade boa agora para ser distribuída na Maré [favela da Maré], que é onde começa a história da Marielle e da nossa família. Os primeiros a receberem a versão impressa serão os estudantes da Maré e do [Complexo de favelas do] Alemão, que é bem próximo. A gente espera que seja um trabalho muito bem recebido pelos alunos. A história está muito bonita e muito bem contada.
Pretendemos ter mais outros volumes. Esse é só o primeiro. Tem pessoas que não foram citadas nesse agora, mas que devem ser citadas nos próximos volumes. Se Deus quiser! Nós temos esse projeto e vamos conseguir fazer mais.


Pulsar: E como foi o lançamento?
M: Foi muito bom no dia do lançamento! Ainda mais que foi num dia simbólico, o dia do nascimento dela! Para nós é um dia de tristeza, doloroso, né? Mas foi um dia de muito carinho também. Tivemos muitas pessoas fazendo felicitações para a gente, principalmente pra mim. Muita gente lendo os quadrinhos, rememorando a história de Marielle, contando o que passou em outros aniversários com ela. Foi um dia de celebrar a vida da Marielle.
Pulsar: Neste mês o Instituto participou de um ato em frente ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) junto com o Comitê Justiça por Marielle para cobrar respostas depois das recentes mudanças nas equipes de investigação do atentado contra Marielle. Como a senhora vê essas novas mudanças?
M: Toda mudança traz transtorno. Às vezes é um transtorno bom pra gente tirar proveito. Mas em outras, não são tão bons, como os que temos vivido ultimamente.
No caso da minha filha, a gente começa com essa gama de notícias que não chegam a algum processo que possa fazer uma denúncia concreta em cima de quem são os mandantes. E depois, com a saída das promotoras [Simone Sibílio e Letícia Emile], as coisas mudam um pouco. Até porque a doutora Simone é uma mulher que faz júri há muitos anos e é uma mulher super comprometida com a causa da minha filha. Estavam conosco, ela e a doutora Letícia, desde 1º de setembro de 2018.
Isso não quer dizer que a DH [Delegacia de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro] não tenha feito o trabalho. Fez e fez muito bem! Eu advogo e acompanho bem todo o processo da minha filha até onde eu posso ver, é lógico – porque eu não faço criminal, mas eu acompanho de perto. Desde os primeiros delegados, que foram o Giniton [Giniton Lages], passou para o Daniel Rosa, Moisés Santana e agora tem outro [Henrique Damasceno] que assumiu há pouco tempo. Estamos com o quarto delegado. E com um processo emblemático como é o da minha filha e do Anderson, um processo que a gente tá vendo que já está com mais de 20 volumes, você há de convir que é complicado ter uma definição ou ter qualquer coisa concreta que a gente possa dizer que seria “sim ou não”.
Mas acreditamos numa mudança pra melhor. Os nomes já foram definidos e agora a gente está aí muito confiante que esse grupo possa continuar o trabalho iniciado pelo doutor Fábio Amado, que é o defensor público que está com a gente desde o início, junto com a doutora Lívia Casseres e a doutora Daniele Silva. A gente acredita que esse novo grupo consiga dar continuidade a esse trabalho com coerência, responsabilidade e, principalmente, zelando pelo nome da instituição que é o Ministério Público do Rio de Janeiro.
Eles já vão começar. Estão definindo a posição de cada um na força-tarefa. O Bruno Gangoni [coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e que assumiu temporariamente o caso] também, que é um promotor que trabalhava na Baixada [Fluminense] já há muitos anos e é muito comprometido com a justiça. Eu o conheci no ano passado. Quando a notícia chegou eu já conhecia o trabalho que ele fazia. E, inclusive, ele foi indicado pelas promotoras Simone e Letícia quando elas saíram.
Eu acho que ainda tem muito trabalho pela frente, mas a gente está muito confiante que isso possa ter um resultado positivo. Apesar de toda essa demora que nós temos, desse desgoverno desse homem que não tem compromisso com nada, dessas pessoas que não querem que esse processo avance, a gente mantém a nossa esperança na Justiça. O Judiciário tem se comprometido. No Ministério Público o doutor Luciano Mattos [procurador-geral de Justiça do MPRJ] tem sido bem comprometido também. Já me recebeu várias vezes.
É lógico que é um processo delicado que, pra você fazer uma indicação para alguém assumir um processo desse, você tem que saber até onde a pessoa não está comprometida também com a história, né? Não adianta você colocar qualquer um para que não dê um prosseguimento da maneira que o Brasil espera, que eu como mãe preciso e que todos nós precisamos, que é saber quem são os mandantes: Quem mandou e por que mandaram matar a Marielle?
Pulsar: O Instituto Marielle Franco tinha acabado de inaugurar a “Casa Marielle”, em março de 2020, quando a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil. De que forma a pandemia impactou as ações de vocês e como tem sido o trabalho do Instituto durante o período?
M: O Instituto tem trabalhado bastante! É um Instituto que hoje é conhecido no mundo inteiro. Nós estamos aí com vários parceiros que tem caminhado conosco nessa luta. Nós tínhamos programado um festival para marcar os três anos da morte da minha filha. Mas foi decretada a pandemia geral. Atrapalhou um pouco mas não deixamos de fazer o que nós estávamos fazendo. O festival não aconteceu mas aconteceram outras ações no Brasil e no mundo inteiro.
Nós fizemos aqui no Rio uma coletiva no MAM [Museu de Arte Moderna] e conseguimos botar isso tudo dentro do que era possível pra gente dar continuidade e tocar o projeto de uma maneira digna. Levar essa história de um 14M de sofrimento, de luta, mas também de muita esperança de que aquilo fizesse uma mudança dentro do processo.
E sobre as ações do Instituto, a gente tem feito muita coisa boa. Por exemplo, em relação às eleições a gente trabalhou com a PANE [Plataforma Antirracista nas Eleições], com [o movimento] Mulheres Negras Decidem, com a Coalizão Negra por Direitos e até dentro dos próprios partidos de esquerda que encaminharam algumas ações de acolhimento social propostas por nós.
Uma ação importante do Instituto foi a Agenda Marielle Franco. Mais de 200 mulheres se comprometeram com a agenda da Marielle, independente de qualquer partido e ideologia. Então, foi um processo bonito que a gente está colhendo os frutos e vai colher muito mais. Todos os que se comprometeram estão dando o seu recado de continuar lutando sem medo, indo a essas Câmaras em todo Brasil e levando as pautas da Marielle cada vez mais longe.
E tem também outras ações que a gente tem tido todos os dias. Desde acolher as pessoas, dando uma palavra, escutando, como fazendo ações efetivas. Através de parcerias com outras entidades, a gente está atuando diretamente dentro de uma política que a gente precisa fazer, que é melhorar as condições de vida das pessoas, continuar rememorando tudo que a Marielle fez, preservar o seu legado, lutar por justiça e continuar também regando as sementes que tem brotado a cada dia nessas mulheres em todos os segmentos que a gente vê. Desde a mulher que vende cachorro quente aqui na frente da minha casa, que se espelha na minha filha, a outros projetos que a gente tem muito maiores.
Então é isso que o Instituto tem feito. Não dá nem pra enumerar! A Ani [Anielle Franco] tem doado cada vez mais força liderando esse projeto. É uma irmã, comadre, uma parceira que tem se dedicado muito! E a gente também ajuda no que a gente pode porque fomos nós, como família, que fundamos o Instituto.
Pulsar: E o que vem por aí no futuro? Quais são os planos para os próximos anos?
A gente tem muitos projetos na cabeça. Um deles é construir um Centro de Memória. É lógico que isso não é fácil. Principalmente porque nós ainda não temos um lugar seguro para receber o Centro. A gente está se estruturando pra isso. A estruturação do Instituto leva tempo. A gente não tem um apoio que eu possa dizer assim: “A gente tem um espaço com segurança pra colocar o que é da minha filha”.
Infelizmente, cada dia mais, temos nos preocupado com a ação de vândalos. Para colocar as coisas da Marielle em um lugar, tem que ser com segurança.
A Anielle tem se empenhado ao máximo para dar todo o suporte. Ela é uma mulher que morou vários anos fora, fala inglês fluentemente e faz isso com muita dignidade. Desde as reuniões aqui no Brasil até fora do Brasil. A OEA [Organização dos Estados Americanos] e a ONU [Organização das Nações Unidas] têm acompanhado isso tudo, todo esse nosso esforço para criar o Centro de Memória, clamar por justiça, regar as sementes que tem surgido em todo mundo e continuar com o legado da Marielle.
Então é importante que a gente tenha essa visão e que cada vez mais as pessoas nos apoiem. Seja com uma palavra, com um financiamento coletivo. Estamos aqui para que essa memória chegue cada vez mais longe, seja respeitada e seja um compromisso com a vida, que é o que a gente precisa ter.
Todo apoio é muito importante. Porque a gente é uma família marcada por uma dor tremenda. Uma família que tem se superado a cada dia para levar a memória da Marielle cada vez mais longe.
A gente vive hoje um momento difícil de pandemia no Brasil, mas não podemos parar. Por isso a gente segue construindo junto com essas mulheres que tem se levantado, com esses movimentos sociais que estão aí firmes nos compromissos deles, fazendo muitas vezes a parte que as autoridades e o Governo em si não fazem. O que nós do Instituto e outras tantas entidades fazemos é nos comprometermos com a vida. É isso que a gente tem feito.
O Instituto tem isso. Em cima das quatro plataformas que tem em relação a história da minha filha, tem o compromisso com a vida humana, que é o que a gente tem feito. É acolher, é dar segurança às pessoas que nos procuram, é continuar levando as sementes, o legado, a memória e clamando por Justiça pra Marielle e Anderson.
Edição: Jaqueline Deister