Após nove dias de buscas sem resultado, o desaparecimento do jornalista britânico Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari, no Amazonas, segue gerando uma série de repercussões e protestos em todo Brasil. Nesta terça-feira (14), por exemplo, servidores e funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) realizaram um ato em frente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, em Brasília, para reivindicar o reforço da segurança em regiões isoladas da Amazônia.
O protesto faz parte da paralisação de 24h definida em assembleia realizada na última segunda-feira (13) e iniciada na manhã desta terça. Além da cobrança por mais segurança para “garantir a integridade física dos servidores da Funai em TODAS as Bases de Proteção do Vale do Javari”, os grevistas também exigem reforço nas buscas por Bruno Pereira e Dom Phillips e a retratação do presidente da Funai, Marcelo Xavier, pelas “difamações” e “inverdades” publicadas em nota oficial da Fundação, na última sexta-feira (10).
No documento, o órgão acusa a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) de mentir sobre as autorizações de ingresso de Bruno Pereira e Dom Phillips na Terra Indígena (TI) Vale do Javari e afirma que a dupla não tinha autorização para entrar em reservas indígenas. As acusações foram rebatidas pela própria Univaja em nota publicada na última segunda-feira (13). Segundo a organização, além de ter um pedido de autorização protocolado na Coordenação Regional da Funai com validade até o dia 30 de maio, desde que o indigenista se encontrou com Dom Philips, a dupla percorreu apenas trechos fora dos limites da TI Vale do Javari.
Em manifesto divulgado no mesmo dia, a Univaja denunciou que além dos ataques “através de notas mentirosas veiculadas na mídia”, a Funai “tem sido omissa” na região.
“O Vale do Javari é nossa terra e somos nós que sabemos andar na região. Precisamos de monitoramento e fiscalização territorial para proteger nossas vidas e as vidas dos povos isolados. Queremos que as autoridades olhem para o que está acontecendo no Vale do Javari e tomem providências diante do número crescente de dos invasores, que nosso território seja protegido, hoje e no futuro, pelos nossos filhos e netos”, conclui o texto.
“Anti-indígena”
Um dia antes de começar a paralisação, na segunda-feira (13), a Indigenistas Associados (INA), associação de servidoras e servidores da Funai, lançou, em parceria com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), o dossiê “Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”.
Com análises detalhadas de documentos oficiais colhidos nos últimos três anos, depoimentos de servidores, materiais de imprensa e publicações de organizações da sociedade civil, o documento aponta que, desde que Jair Bolsonaro (PL) assumiu a presidência do país, a Funai “tem implementado uma política anti-indigenista, marcada pela não demarcação de territórios indígenas, perseguição aos funcionários concursados e lideranças indígenas, somada a uma militarização sem precedentes do órgão”.
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O estudo lembra que, assim que tomou posse, em 2019, Bolsonaro tentou tirar da Funai, por meio de Medida Provisória, a função de demarcar terras indígenas, assim como a de se manifestar em processos de licenciamento ambiental com impacto sobre elas. Após a estratégia ser barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o plano passou a ser controlar o órgão a partir da nomeação do delegado da Polícia Federal (PF) Marcelo Xavier à presidência e de outros diretores e coordenadores totalmente alinhados à bancada ruralista no Congresso Nacional.
Sobre o processo de “militarização” que a Funai tem experimentado nos últimos anos, o dossiê destaca que, atualmente, apenas duas das 39 Coordenações Regionais da Fundação são chefiadas por servidores públicos. Entre as demais chefias, 19 são coordenadas por oficiais das Forças Armadas. Três por policiais militares, duas por policiais federais e o restante, por pessoas na condição de servidores substitutos ou sem vínculo com a administração pública. No alto escalão do órgão, a diretoria é formada por dois policiais e um militar, além do presidente e delegado Marcelo Xavier.
Ainda segundo o levantamento, soma-se a este cenário o desmonte proposital da estrutura de ação da Funai e a intimidação de servidores, com o aumento “vertiginoso” do número de processos administrativos disciplinares (PAD). A INA e o INESC ressaltam que, o último relatório do órgão, em 2020, mostra que havia mais cargos vagos na autarquia (2.300 vagas) do que profissionais em atuação (2.071 profissionais, sendo 1.717 funcionários efetivos).
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De acordo com a INA, a Funai “tem manifestado desistência formal de demandas judiciais envolvendo direitos coletivos de povos indígenas, sendo omissa em inúmeros casos de violência, invasões, massacres e corrupção”.
“Na antítese de sua razão de existir, o órgão virou laboratório de políticas anti-indígenas sem bases legais definidas, fragilizando territórios e etnias”, afirma a organização.
Buscas
Na segunda-feira (13), a família de Dom Phillips, que vive no Reino Unido, foi informada pela Embaixada Brasileira em Londres de que dois corpos teriam sido encontrados na região próxima de onde o jornalista e Bruno Pereira foram vistos pela última vez. Contudo, de acordo com a Polícia Federal e a Univaja, os corpos estão sob perícia e ainda não foram identificados.
No último domingo, as equipes de busca encontraram objetos pessoais de Bruno Pereira e Dom Phillips. No mesmo dia, o Corpo de Bombeiros havia informado que uma mochila também havia sido encontrada, contendo um notebook e um par de sandálias, mas sem a confirmação sobre a quem pertenceriam.
Na sexta-feira (10), a PF informou que as equipes localizaram “material orgânico aparentemente humano” no rio Itacoaí, próximo ao porto de Atalaia do Norte. O material genético foi encaminhado para análise pericial ao Instituto Nacional de Criminalística da PF.
Segundo a Univaja, Bruno e Dom foram vistos pela última vez percorrendo as comunidades São Gabriel e Cachoeira, cerca de 40 minutos de barco do município de Atalaia do Norte, fronteira do Brasil com o Peru.
Considerada a segunda maior Terra Indígena do país, a TI Vale do Javari tem 8,5 milhões de hectares tem sido alvo frequente de narcotraficantes, pescadores e caçadores ilegais, garimpeiros e madeireiros. A floresta abriga mais de 6.317 indígenas de sete povos contatados (Kanamari, Kulina, Marubo, Matís, Matsés e Tsohom-Dyapá, este de recente contato, e um grupo de Korubo) e ao menos 16 referências a grupos isolados e não contatados.
Edição: Jaqueline Deister