Após o Congresso Nacional derrubar o veto do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) ao “PL da Conectividade” que destina cerca de R$3,5 bilhões de recursos federais para garantir internet gratuita a estudantes e professores da rede pública durante a pandemia, a Presidência da República promulgou a Lei 14.172 que determina o repasse do valor para assegurar o acesso à internet da educação básica pública do país.
A medida foi publicada no Diário Oficial da União desta sexta-feira (11), a norma só foi possível após o Congresso Nacional rejeitar, em sessão no início de junho, o veto total do presidente Jair Bolsonaro ao projeto que originou a lei (PL 3.477/2020).
A estimativa de deputados e senadores é que aproximadamente 18 milhões de estudantes e 1,5 milhão de educadores sejam beneficiados com a nova lei. No mesmo sentido, na última quarta-feira (9), o Senado aprovou o projeto de lei 142/2018, que institui a Política de Inovação Educação Conectada (Piec), cujas principais providências são a instalação internet banda larga em escolas públicas e o fomento do uso pedagógico de tecnologias digitais.
Evasão escolar
Há seis anos Dora Gallindo trabalha como professora de História na rede municipal de ensino da capital paraibana, João Pessoa. Com a chegada da pandemia de Covid-19, em 2020, a rotina de Dora foi totalmente alterada, assim como a de milhares de trabalhadoras e trabalhadores da educação em todo país. Além dos desafios em termos de ferramentas e estratégias pedagógicas, a realidade das aulas remotas trouxe à tona outros problemas. Entre os principais: a dificuldade de acesso à internet pelos estudantes.
A professora conta que das seis turmas (três de 8º ano e três de 9º ano) que tinha em 2020, restaram apenas quatro em 2021. Além do alto índice de evasão escolar, ela destaca que a participação nas atividades online também diminuiu em relação ao ano passado. Um cenário que, conforme apontam as pesquisas, se repete em praticamente todos os estados do país.
De acordo com a Unesco, até 2019 cerca de 20 milhões de domicílios brasileiros não possuíam internet. Na mesma linha, um estudo publicado em abril deste ano pela Unicef revela que o número de meninas e meninos sem acesso à Educação no país saltou de 1,1 milhão, em 2019, para mais de cinco milhões em 2020.
Vitória do Brasil
Para Rozana Barroso, estudante de pré-vestibular e presidenta da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), a aprovação do PL 3477 é considerada uma vitória não só da educação, mas de todo povo brasileiro. “Não há Brasil que avance, quando a educação retrocede. A educação é o meio de transformação da nossa vida não só no sentido individual, mas também e principalmente no coletivo”, diz à Pulsar Brasil.
A estudante destaca que a organização participou ativamente da elaboração da proposta junto aos parlamentares desde as primeiras formulações, ainda no início de 2020. “Nós construímos em conjunto esse projeto de lei que teve vitória na Câmara e no Senado. Logo em seguida fomos surpreendidos com o veto do presidente da República, mas continuamos na batalha pelos meninos e meninas que estão há tanto tempo sem estudar”, explica Rozana.
A presidenta da Ubes ainda lembra do aumento da desigualdade social causado pela deficiência no ensino durante a pandemia. “Quando a gente fala de um Brasil que está há mais de um ano sem garantir o direito de acesso à educação que nos é assegurado na Constituição Federal, nós estamos falando de um país que vai ter uma cicatriz muito grande, em especial nesse momento de agravamento da desigualdade social”, afirma.
Exclusão digital nas escolas
Na opinião de Dora Gallindo, que desde o primeiro semestre de 2020 tem lidado diariamente com os obstáculos e desafios da educação remota na rede pública de ensino, a dificuldade de acesso à internet tem sido um fator limitante desde o planejamento das aulas até o acompanhamento dos alunos. Ela conta que até o momento, o apoio recebido do poder público foi uma formação, já em 2021, sobre o uso de ferramentas digitais no ensino remoto. O que, segundo ela, se resumiu a um treinamento sobre o uso da plataforma Google for Education.
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O treinamento, no entanto, não tem sido suficiente para garantir condições adequadas de educação para as crianças e adolescentes da Escola Municipal Luiz Vaz de Camões. De acordo com a professora, devido ao baixo número de estudantes com acesso a rede wi-fi e o número ainda menor com acesso a computador, o uso do WhatsApp – que conta com franquia de dados nos planos pré-pagos de celular – tem sido a ferramenta mais acessível para comunicação com os alunos. Dora relata, inclusive, que algumas famílias teriam utilizado o recurso do auxílio emergencial para comprar tablets e smartphones, afim de garantir a continuidade dos estudos dos filhos.
As “aulas”, portanto, têm se dividido entre arquivos enviados nos grupos das turmas no WhatsApp, atividades no Google Formulário e exposições no Google Meet. Para os alunos que não têm acesso à internet, a escola passou a imprimir as atividades semanalmente. Mesmo assim, conforme explica a professora, a continuidade da participação dos estudantes nas atividades escolares tem sido cada vez mais baixa.
“Eu tentei fazer essas aulas pelo Google Meet e, de turmas de 25 alunos, dois acessam as aulas. Eu tenho três turmas no 9º ano que têm 65 alunos a soma delas. Os alunos que respondem o Google Formulário é uma média de 15 alunos. Muitos relatam que não têm como baixar o aplicativo porque não possuem memória suficiente no celular, além de não ter acesso a computador”, comenta a professora.
Dentre os principais impactos provocados pela dificuldade de acesso à internet por parte dos estudantes, a professora de História destaca a perda do diálogo.
“A História trabalha muito com conceitos, que é um conhecimento muito abstrato, e às vezes também trabalha com um passado muito longínquo. Se já era difícil estabelecer um diálogo e observar uma aprendizagem significativa com aulas presenciais, agora, com as aulas remotas, ficou muito mais. Eu não falo que são aulas. São atividades impressas. O diálogo e a interação são extremamente limitados e, pra mim, sem isso não existe aula. Não é educação, é um tapa buraco. Uma tentativa desesperada de conseguir o mínimo possível para continuar a ter uma comunicação com os estudantes, mas muito limitada”, arremata.
Muito além da internet
Sobre os projetos de lei aprovados no Congresso, a professora acredita que eles podem sanar parte do distanciamento em relação aos estudantes. Mas aponta que para que seja possível falar em educação pública na pandemia, além da democratização do acesso à internet, seria fundamental o retorno do auxílio emergencial no valor de R$600 e a vacinação em massa da população o mais rápido possível.
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Segundo ela, com o agravamento da crise sanitária e socioeconômica brasileira, alguns alunos- menores de idade, inclusive- precisaram abandonar os estudos para trabalhar e auxiliar na renda de casa. O atraso na vacinação dos brasileiros também preocupa pois, embora a maioria das trabalhadoras e trabalhadores da educação estejam vacinados, milhares de estudantes e familiares seguem vulneráveis ao vírus. Além disso, Dora lembra que até pouco antes da pandemia, a escola em que ele trabalha, por exemplo, sofria com problemas estruturais como falta de água, energia e salas pouco ventiladas.
“Quando se fala em educação pública na pandemia, não tem como deixar de falar do retorno de um auxílio emergencial e de uma distribuição de renda básica para sobrevivência dessas famílias. A gente tem passado por essas contradições, das famílias e dos alunos pressionarem pelo retorno das aulas presenciais, dos alunos sentirem falta da escolas, mas, em contrapartida, das escolas não terem condições de um retorno seguro às aulas presenciais. Tanto pela estrutura física, quanto pela questão da vacinação marcada pelo atraso e incertezas” conclui.