Redação
Aos 48 anos de idade, Madalena Gordiano experimenta um dos momentos mais felizes da vida. Em novembro de 2020, ela foi resgatada de uma situação análoga à escravidão que já durava 38 anos. Sete meses depois, a ex-doméstica conquistou na Justiça o direito à indenização de cerca de R$ 690 mil, o maior acordo já feito de maneira individual pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em casos semelhantes. Com a vitória, além de finalmente retomar os estudos, cuidar da saúde e conhecer o mar, Madalena pretende comprar uma casa, reencontrar familiares e cursar enfermagem. Uma reviravolta que a alçou a símbolo de luta contra o trabalho escravo no país e que, em breve, deve se tornar livro.
A história de Madalena ficou famosa no fim de 2020, quando apareceu no programa “Fantástico” da TV Globo. Madá, como passou a ser chamada pelos novos amigos, passou quase quatro décadas trabalhando como doméstica sem registro em carteira, salário mínimo e nem descanso remunerado. Quando foi resgatada por agentes da Polícia Federal e do MPT na casa da família Milagres Rigueira, em Patos de Minas, interior de Minas Gerais, ela vivia em um quartinho sem janela, sem acesso a televisão ou celular e sem nenhum bem pessoal além de três camisetas e um lençol.
Como ressarcimento pelos anos de situação análoga à escravidão, a defesa de Madalena cobrou cerca de R$ 2,2 milhões em direitos trabalhistas. Contudo, durante audiência, realizada de maneira virtual no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da terceira região em Patos de Minas, ela aceitou a oferta feita pelos ex-patrões no valor de R$ 690.100. O pagamento será efetuado com a entrega do apartamento da família, no valor de R$ 600 mil, um carro da marca Hyundai, no valor de R$ 70 mil e uma quantia de R$ 20 mil.
O acordo é referente apenas à relação trabalhista e tinha como réus o professor universitário Dalton Milagres Rigueira, sua esposa Valdirene Lopes Rigueira, e as filhas do casal. Além do processo trabalhista, correm ainda na Justiça um processo administrativo e criminal em que aparecem outros membros da família como responsáveis pelo anos de abuso e precariedade aos quais ela foi submetida. Os dois outros processos são conduzidos pelo Ministério Público Federal (MPF) e até o momento não há previsão de desfecho. Desde que o caso ser tornou público, Dalton Milagres foi demitido da Fundação Educacional de Patos de Minas (Fepam), entidade mantenedora do Centro Universitário de Patos de Minas (Unipam), onde lecionava.
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Se dividido pelo tempo em que ficou sob a custódia dos Milagres Rigueira, o valor da indenização corresponde a apenas R$ 1.118 mensais. Além disso, o apartamento entregue pela família possui uma dívida de financiamento de R$ 180 mil e não possui a garantia de que será vendido pelo preço que é avaliado. No entanto, a defesa de Madalena considera o acordo uma vitória pois, embora esteja bem abaixo do que o valor exigido inicialmente, atendeu ao pedido da própria Madalena de que o acordo fosse concluído o quanto antes e não se prolongasse na Justiça e constitui um fato inédito em situações como a da ex-doméstica.
Entre 2016 e 2020, o MPT recebeu mais de seis mil denúncias relacionadas a trabalho análogo à escravidão, aliciamento e tráfico de trabalhadores.
Pensão
Além da indenização trabalhista, Madalena também terá direito a receber integralmente uma pensão de R$ 8,4 mil por ser ‘esposa’ de Marino Lopes da Costa, um falecido ex-combatente da Segunda Guerra Mundial. De acordo com inquérito do Ministério Público, o casamento nunca existiu de fato, mas foi arranjado por Maria das Graças Milagres Rigueira (mãe de Dalton) e a nora Valdirene Rigueira para que a família pudesse administrar o dinheiro assim que o homem falecesse. Marino era tio de Valdirene e tinha 78 anos quando a certidão de casamento foi assinada, enquanto Madalena tinha 27. O registro matrimonial ocorreu no cartório na zona rural de Cajuri, cidade próxima a Viçosa e que tinha trâmites menos burocráticos. Marino morreu dois anos após o ‘casamento’.
Conforme informações de auditores fiscais do caso, o dinheiro da pensão nunca passou pelas mãos de Madalena, mas serviu para financiar os gastos da família por 17 anos. Em depoimento ao MPT, Dalton disse que repassava o valor integral do benefício a Madalena, enquanto ela relatou que recebia entre R$ 50 e R$ 200 por mês. As investigações descobriram ainda cinco empréstimos consignados feitos em nome da ex-doméstica que geravam um desconto de R$ 5 mil por mês. Todavia, em junho, a defesa de Madalena conseguiu estabelecer um acordo com os bancos para cessar os descontos.
Novo capítulo
Desde que foi libertada, Madalena voltou a ter aulas de português e matemática com uma professora particular. Ela havia sido forçada a abandonar os estudos desde que começou a trabalhar na casa dos Milagre Rigueira, ainda aos oito anos de idade. Madá também tem viajado acompanhada de tutores para estimular seu desenvolvimento e também proporcionar o lazer a que nunca teve direito ao longo dos últimos 38 anos.
Um dos tutores é o economista José Humberto Fernandes. Em entrevista ao Portal R7, ele contou que já começou a escrever um livro sobre a história de Madalena. Com previsão de lançamento para o fim do ano, a obra mistura realidade e ficção e pretende remontar a trajetória de Madá ao mesmo tempo que resgata o histórico da servidão de negros no Brasil desde a colonização.
Além da expectativa em relação ao livro, Madalena também espera reencontrar parte da família que vive em São Miguel do Anta, em Minas Gerais. Quando saiu de casa, na infância, ela tinha outros 16 irmãos.