Trocar o número de telefone, criar novas senhas, adotar protocolos de segurança virtual, retomar contatos, monitorar e avaliar regularmente as próprias redes sociais. Estas são apenas algumas atividades que, nos últimos anos, passaram a fazer parte do cotidiano de Gizele Martins, jornalista e comunicadora comunitária com mais de 20 anos de atuação nas periferias do Rio de Janeiro e do Brasil. Mesmo assim, em março deste ano, Gizele teve que lidar novamente com a invasão de suas contas nas redes sociais.
Pouco tempo antes, no dia 25 de fevereiro, a jornalista e pesquisadora Camila Bezerra teve a defesa de dissertação de mestrado interrompida por um ataque promovido por um grupo de extrema direita. A sala virtual onde ocorria a defesa foi travada, ninguém conseguia entrar ou sair, e no lugar da apresentação de Camila foram exibidos videos com imagens de soldados nazistas e mensagens de ódio pregando a morte de feministas, homossexuais e defensores dos direitos humanos. Segundo a própria jornalista, foi o primeiro caso de intimidação ocorrido no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo na Universidade Federal da Paraíba (PPGJ-UFPB). A pesquisa apresentada por Camila tinha como título “Não tenho medo de dar opinião! A mulher jornalista na editoria de política em João Pessoa sob uma perspectiva de gênero”.
Apesar dos contextos diferentes, as histórias de Gizele e Camila apontam para uma situação cada vez mais recorrente no país: a perseguição a jornalistas e comunicadoras mulheres no ambiente virtual. De acordo com levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), as mulheres correspondem a mais de 56% das vítimas de ataques em meios digitais contra jornalistas. Tais ações vão do insulto, desqualificação e difamação das profissionais até a espionagem, invasão de contas, exposição de dados pessoais, assédio e ameaças.
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Para a jornalista Bia Barbosa, mestra em Políticas Públicas e pesquisadora em Liberdade de Expressão e Regulação de Meios, as comunicadoras mulheres são, hoje, um “duplo alvo” das campanhas de violência que têm ocorrido no ambiente online.
“Tem uma causa estruturante que historicamente coloca as mulheres como alvo pelo fato de sermos uma sociedade estruturalmente machista. Mas tem também um fator mais conjuntural que é resultado da crise política e institucional que a gente vive e do fato do jornalismo ter passado, nos últimos anos, a ser alvo de deslegitimação e de ataques por parte das mais altas estruturas de poder do país”, afirma.
O ataque aos corpos femininos
Barbosa também explica que, embora não haja uma regra geral, esses ataques não costumam se dar de forma espontânea. Antes, contam com uma organização estruturada que aponta quem serão os alvos, seja por meio de declarações de representantes públicos ou através de redes digitais. A partir desse direcionamento, uma série de grupos se engaja e passa a multiplicar esses ataques de forma descentralizada, gerando danos profissionais e pessoais para as vítimas. Algumas consequências citadas pela pesquisadora são o aumento da ansiedade, síndrome do pânico, depressão, autocensura e, em alguns casos, até o abandono da profissão.
Camila Bezerra, por exemplo, conta que a invasão sofrida no ambiente acadêmico teve reflexos em sua atuação como jornalista e trouxe uma sensação de vulnerabilidade até então inédita.
“Isso acaba gerando um receio de se aprofundar em algumas questões ou em alguma denúncia. Porque você sente que pode acontecer alguma coisa ruim. Você não tem mais segurança para falar porque você não sabe quem vai ouvir e se essa pessoa vai querer revidar de forma violenta”, comenta a jornalista que garante não recordar de qualquer conflito ou algo que pudesse ter motivado o ataque sofrido, a não ser o fato de seu estudo relacionar a prática jornalística com a discussão de gênero.
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No caso de Gizele Martins, a comunicadora comunitária relata que convive com intimidações há mais de 10 anos no exercício da profissão e que chegou a perder um emprego e ter que mudar de endereço por conta de ameaças.
Na linha de frente de coberturas sobre assassinatos, chacinas, remoções e violações cotidianas do Estado às populações de favelas, a jornalista faz questão de destacar que no seu caso, e em boa parte dos ataques (virtuais ou não) contra comunicadoras, eles têm uma direção: o corpo feminino.
“‘Vou te estuprar, vou te esquartejar’, ‘se você não calar a boca vou te estripar’, eu já tive mensagens desse tipo chegando nas minhas redes. Quando o Exército esteve dentro da Maré, em 2014, havia violação dos nosso celulares, queriam olhar nosso computador, nossa bolsa, mas também colocavam a mão no nosso corpo. Então, são várias violações quando a gente é mulher favelada e jornalista comunitária dentro de uma favela”, conta à Pulsar Brasil.
Como se proteger?
Além da adoção de protocolos de segurança na internet, a pesquisadora Bia Barbosa recomenda que as comunicadoras que sofreram algum ataque no ambiente virtual ou que se sintam ameaçadas tomem algumas medidas. A primeira delas seria evitar respostas imediatas nas redes e monitorar os ataques para verificar se eles tendem a se agravar ou não. Além de gerar provas para possíveis processos, isso diminui a visibilidade pretendida por alguns violadores ao executarem esses ataques. Outro passo importante seria denunciar as violações às plataformas digitais onde elas ocorreram e cobrar medidas protetivas. Da mesma forma, os órgãos competentes do poder público também precisam ser acionados.
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Por fim, embora não por último, Bia Barbosa fala da importância de construir uma rede de apoio e não silenciar. “Nós temos várias iniciativas de organizações feministas que trabalham com segurança digital, a Rede Transfeminista de Cuidados Digitais, por exemplo. Essas organizações oferecem todo suporte às mulheres para que saibam como se proteger no ambiente online, até que ponto reagir e como reagir a esses ataques. O mais importante é que a gente não silencie diante dessas violações”, conclui.
Autora dos livros “Militarização e censura: a luta por liberdade de expressão na favela da Maré” e “Auto de Resistência: a omissão que mata”, Gizele Martins conta que chegou a pensar em abandonar as redes sociais após as sucessivas invasões de suas contas – só no Facebook foram mais de oito. Mas recentemente voltou a ter perfis públicos para ajudar a campanha de enfrentamento à pandemia da Frente de Mobilização da Maré.
“A gente sofre com a falta de salário, com a precarização, falta de estrutura e também com as ameaças. Mas eu entendo que o que a gente faz salva vidas, literalmente. Então, a gente cria outras estratégias, mas a gente não deixa de fazer. Porque é uma luta por memória, é uma luta pela vida”, conclui.