Desde 1950, o dia 10 de dezembro é lembrado em todo o mundo como o Dia Internacional dos Direitos Humanos. A data celebra a oficialização da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948.
Ao longo de seus 30 artigos a DUDH elenca uma série de direitos fundamentais para a garantia da dignidade humana como o direito a saúde, educação, emprego, moradia, justiça e, junto deles, o direito à comunicação. De acordo com o artigo 19 do documento, “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
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No Brasil, a “Carta de Brasília”, assinada em 2005 durante o Encontro Nacional de Direitos Humanos, reforça que o direito à comunicação incorpora não só a liberdade de expressão e o direito à informação, como também o “acesso pleno e às condições de sua produção”, “a garantia de acesso equitativo às tecnologias da informação e da comunicação” e “a socialização do conhecimento a partir de um regime equilibrado que expresse a diversidade cultural, racial e sexual”. Ainda segundo a Carta, a importância do direito humano à comunicação está ligada ao papel da comunicação “na construção de identidades, subjetividades e do imaginário da população, bem como na conformação das relações de poder”.
“Em construção”
Com mais de 20 anos de atuação com a comunicação popular e comunitária através da FM Comunitária Independência, emissora que opera no município de Independência, no interior do Ceará, a professora e radialista Rosa Gonçalves disse que, na prática, o direito à comunicação “é um conceito em construção e muitas vezes difícil de ser compreendido”.
“Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos que a comunicação é direito de todos, porém o que vemos na prática é que se torna restrito a poucos donos de empresas. Grande parte das populações que se encontram nos seus territórios – os quilombolas, indígenas, trabalhadores rurais, por exemplo – têm esse direito negado porque nem sempre conseguem acessar e produzir a comunicação” questiona a comunicadora.
Neste cenário, a diretora da FM Comunitária Independência lembra que, desde que foi criada, a emissora tem trabalhado no sentido não apenas de garantir o acesso à informação da população local, mas também de “ajudar a desenvolver a consciência crítica, apoiar a conquista de direitos, despertar para a convivência com o semiárido e colaborar na formação cultural, valorizando a diversidade, o local, o cotidiano e as iniciativas comunitárias e recriando a cultura tradicional junto com a adaptação às inovações”.
“Nós precisávamos de um veículo de comunicação para sairmos do isolamento, para divulgar as iniciativas de nossas comunidades. Com uma programação abrangente, a rádio comunitária divulga e incentiva as experiências bonitas das comunidades, interligando campo e cidade, ajudando a refletir os acontecimentos da realidade local dentro do contexto mais amplo que é o Brasil e o mundo e provocando a sociedade a cobrar e exigir que seus direitos sejam garantidos”, explicou a integrante da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc Brasil) à Pulsar.
Digital
Também membro da Amarc Brasil, o presidente do Instituto Ubíqua, Jessé Barbosa, é categórico ao afirmar: “Não se pode conceber um país democrático que não consiga democratizar ou enxergar a comunicação como direito humano. Isso é impossível de existir”.
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Com mais de 30 anos de experiência com a formação de comunicadores, Jessé ressalta que embora a instrumentação técnica seja fundamental para lidar com as tecnologias da comunicação, não deve ser considerada como o principal fator de formação.
“A principal peça, o principal ator dessa formação não é a técnica, mas a formação humana, a formação para entender os direitos, entender o lugar onde vive e o que precisa mudar neste lugar. É entender a sua missão como comunicador e comunicadora mais. A parte técnica é importante, obviamente, mas é coadjuvante”, sublinhou à Pulsar.
Sobre os atuais desafios da comunicação comunitária, Jessé destaca como principal a urgência da apropriação e desenvolvimento de ferramentas digitais.
“Comunicador e comunicadora que, hoje, não entende como funcionam os algoritmos ou como atuam as big techs está fadado a ser mais um ‘soldado’ do que uma pessoa capaz de influenciar na sociedade. Nós, do campo popular, do campo comunitário, precisamos desenvolver nossas ferramentas. Precisamos entender que ficar refém das grandes empresas de tecnologia – Google, Meta, etc – não nos levará a lugar nenhum. A gente precisa superar essa ingenuidade e passar para a ‘fase dois’ do jogo.”, alerta.
Neste sentido, Jessé cita o exemplo do Nestante, aplicativo desenvolvido pelo Instituto Ubíqua que estimula jovens de comunidades rurais e periferias a construir e compartilhar conhecimento através da exposição de demandas sociais e da divulgação de boas práticas que contribuam para a solução de problemas locais.
“Eu diria que o principal desafio do nosso campo de comunicação comunitária hoje é utilizar a conexão digital para promover a conexão humana. Nós, que enxergamos a comunicação como direito, não podemos perder de vista que a conexão mais importante que existe é a conexão humana. A conexão digital não é superior, ela deve ser algo que está a serviço da conexão humana. Eu acho que isso é primordial e essencial para a nossa atuação”, concluiu.
Governo
Ainda sobre os desafios da luta pela garantia do direito à comunicação no Brasil, sobretudo no que se refere à comunicação comunitária, o professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), João Paulo Malerba, comentou sobre as possibilidades que se abrem com a mudança de gestão do governo federal a partir de 2023. Segundo ele, embora a composição do legislativo não seja favorável, a revisão e atualização da Lei de Radiodifusão Comunitária (Lei 9.612/98) deveria ser uma das prioridades do governo Lula.
“É uma lei de 1998, de quando ainda não tinha celular, ou pelo menos não era popular, a internet estava ainda engatinhando. Hoje, o que seria ideal é realmente renovar essa lei para que as associações comunitárias que já existem e as outras que venham pleitear por uma outorga possam estar acordadas às diferentes possibilidades multimídia que existem hoje. Com isso, para além de você ter uma outorga de rádio comunitária, haveria a possibilidade de você se transformar, por exemplo, em um provedor de internet”, argumentou o pesquisador.
“A gente vive uma realidade de muita desigualdade de acesso à internet no Brasil e a gente entende que utilizar essa expertise e essa infraestrutura das rádios comunitárias que já tem outorga para que elas passam a ser provedores comunitários de internet ajudaria muito na universalização da internet no Brasil”, completou.
Ainda em relação a possíveis mudanças na Lei de Radiodifusão Comunitária, Malerba destaca a oportunidade de que o Executivo utilize a publicidade governamental justamente para apoiar a radiodifusão comunitária “não somente com a lógica da audiência, mas também numa perspectiva mesmo de pluralidade e diversidade, garantindo uma divisão mais equânime dos recursos da publicidade governamental”.
“A gente sabe que um dos gargalos da Lei de Radiodifusão Comunitária é justamente impedir a publicidade e múltiplas formas de financiamento para as rádios comunitárias”, lembrou.
Por último, o comunicador reforça a importância de que o Estado brasileiro cumpra com a lei no que se refere à capacitação e formação das associações de rádios comunitárias para qualificar a operação das emissoras.
“Isso nunca aconteceu. O que a gente tem, na verdade, é realmente uma carência muito grande de capacitação e formação técnica para que essas rádios comunitárias que já existem e outras que venham existir tenham capacidade plena de efetivar o direito humano a Comunicação nas suas comunidades”, pontuou.
Edição: Jaqueline Deister