O governo Lula (PT) completou, nesta segunda-feira (10), 100 dias à frente do comando do país. Em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, com a presença de ministros e lideranças políticas, o presidente fez um balanço dos primeiros meses de gestão e afirmou: “O Brasil voltou”.
A reação à tentativa de golpe ocorrida em 8 de janeiro e a retomada de políticas públicas e programas sociais como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e o Mais Médicos foram algumas das medidas destacadas por Lula durante o discurso.
Ainda sobre o esforço de reconstrução do país após o governo Bolsonaro (PL), o chefe do Executivo ressaltou a volta do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) e reforçou a promessa de um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com investimentos em transportes, infraestrutura, inclusão digital e transição energética.
“O Brasil voltou para conciliar novamente crescimento econômico com inclusão social, para reconstruir o que foi destruído e seguir adiante. O Brasil voltou para ser outra vez um Brasil sem fome. Não se constrói um Brasil verdadeiramente desenvolvido sob as ruínas da fome”, disse Lula.
Política
De acordo com o cientista político José Marciano, nos 100 primeiros dias de gestão o governo Lula tem apresentado “uma postura completamente divergente da postura do governo anterior”. Segundo ele, o principal diferencial do atual governo tem sido a preocupação com a reestruturação do país “em termos de uma agenda fundamentada nas políticas sociais e na política pública de uma forma geral”.
“Esse eixo é muito importante para retomar o desenvolvimento do país. Tem-se clareza de que não se avança se nós não tivermos políticas sociais e políticas públicas de impacto. E dentre essas políticas sociais se encontram, por exemplo, as políticas de combate à fome, à pobreza – que, por tabela, estão ancoradas também naquilo que nós chamamos de combate às desigualdades”, comentou à Pulsar o professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Diálogo
Do ponto de vista político, Marciano pondera que não se pode analisar a atuação do Executivo sem levar em conta a correlação de forças no Legislativo, especialmente com um Congresso “majoritariamente vinculado à direita e, uma parte significativa, à extrema-direita”.
Contudo, embora concorde com a abertura de diálogo com o Congresso – e, em boa parte, com o chamado “Centrão” – para garantir um mínimo de governabilidade, o cientista político alerta para a necessidade de ampliação do diálogo também com a sociedade de um modo geral. Segundo Marciano, o governo Lula ainda tem falhado no que se refere a abertura de canais diretos de comunicação com a sociedade brasileira.
“O governo não conseguiu fazer uma maioria a partir das urnas. E aí precisa dialogar com esse Centrão. Mas ao mesmo tempo esse governo não tem construído canais de comunicação para o fortalecimento de um campo mais progressista do ponto de vista da sociedade. A minha preocupação maior está exatamente nisso”, pontuou à Pulsar.
Segundo o professor, os grandes grupos comerciais de comunicação do país seguem alinhados ao capitalismo financeiro e às “agendas neoliberais”, o que fragiliza qualquer tentativa do governo de instituir uma agenda de combate às desigualdades ou da promoção de um “Estado de bem-estar social”.
“Isso não se constrói sem agendas claras das políticas sociais e políticas públicas e muito menos sem construir espaços constitucionais de comunicação que alimentem o debate. Falta essa construção de um debate sobre o Brasil, de um debate sobre que país queremos. E isso se faz com a sociedade, não se faz só com o Congresso”, apontou.
“Nós passamos por um processo de golpe, realizado no governo Dilma, e sabemos que os grandes grupos midiáticos do país continuam ainda dialogando com a direita. Poderia não dialogar com Bolsonaro em termos do comportamento político dele, mas em termos de agenda econômica, eles seguem dialogando com esses agentes que estão fundamentalmente no mercado”, acrescentou o cientista político.
Desafios
Sobre os principais desafios do governo para os próximos meses, Marciano destaca a “queda de braço” com o Banco Central (BC) para a redução da taxa de juros e o esforço para realizar “uma reforma tributária que venha a permitir uma melhor distribuição de renda no país e não uma que promove a injustiça fiscal”.
Em relação ao primeiro ponto, o professor da UFCG afirma ser impossível que o país avance no combate às desigualdades com o BC “alimentando o aumento da taxa de juros”.
“Com uma taxa de juros de 13,75% ao ano não tem como fazer o país se desenvolver de maneira equilibrada e nem tampouco sustentável. Isso só beneficia os rentistas e uma fração muito pequena da população que sobrevive da renda do capital. Nessas condições, a fração majoritária da sociedade – leia-se aqui a classe popular e a classe média – fica presa a essa dinâmica e não consegue sequer consumir porque todo o aparato que permite o acesso a crédito está engessado diante de uma taxa de juros exorbitante”, explicou.
No mesmo sentido, Marciano defende que, mais do que o arcabouço fiscal apresentado pelo ministro da Economia, Fernando Haddad, e pela equipe de planejamento, é fundamental que o governo faça “um debate mais aprofundado da reforma tributária”. Neste ponto, o cientista político argumenta que é preciso reverter o atual sistema de arrecadação do país baseado na “tributação regressiva”.
“Não é possível pensarmos uma sociedade mais igualitária quando temos um sistema de tributação que é majoritariamente regressivo. Nós temos uma tributação perversa em que paga-se mais imposto no país quem ganha menos e paga-se menos imposto quem ganha mais. Falar de uma reforma tributária sem discutir a progressividade dos impostos, ou seja, sem construir um debate em que nós possamos fazer com que aqueles que ganham menos paguem menos e aqueles que ganham mais paguem mais fica uma reforma ainda muito inócua, muito vazia”, concluiu.
Edição: Jaqueline Deister