Produzir comunicação “de dentro para dentro” com base no trabalho coletivo e no respeito aos povos, territórios e saberes ancestrais. É com este objetivo – e, ao mesmo tempo, princípio – que a Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas tem transformado a realidade de favelas, bairros, quilombos, aldeias e, de quebra, reinventado o jornalismo no Brasil.
Lançada oficialmente em maio deste ano, a Coalizão é uma iniciativa de 11 organizações que, juntas, tem assumido o desafio de transversalizar pautas e ações de forma multimídia, multiplataforma, online e offline, com abordagens que valorizem e registrem as memórias, narrativas e identidades de territórios historicamente silenciados pela “mídia tradicional”.
O grupo reúne jornalistas e comunicadores que atuam há mais de 10 anos em diferentes regiões do Brasil desenvolvendo estratégias de combate à desinformação, à polarização política e aos discursos de ódio através da produção e distribuição de conteúdos jornalísticos e da educação midiática.
Até o momento a Coalizão é composta pelas seguintes organizações: Periferia em Movimento, Desenrola e Não Me Enrola e A Terceira Margem da Rua (de São Paulo); Frente de Mobilização da Maré e Fala Roça (do Rio de Janeiro); Rede Tumulto (Pernambuco); Mojubá Mídias e Conexões (Bahia); TV Comunidades e TV Quilombo (Maranhão); Coletivo Jovem Tapajônico (Pará); e do Coletivo de Comunicação da CONAQ (presente em todo o Brasil).
Segundo Aline Rodrigues, da Periferia em Movimento, a iniciativa representa um “movimento de democratização” que contribui diretamente para o futuro do jornalismo no país.
“A gente se juntar enquanto Coalizão, organizar os nossos diálogos, torná-los mais contínuos, mais estratégicos, com ações mais bem definidas e com objetivos bem traçados é muito importante para contar para o mundo e para o campo do jornalismo que o jornalismo, sim, está em crise em alguns pontos, mas ele também está se reinventando. Essa crise é uma reinvenção. É um reposicionamento, um democratizar poderes. O jornalismo – ou a credibilidade jornalística – não pode seguir na mão de poucos”, explicou à Pulsar.
“Cada uma dessas mídias está propondo o novo futuro do jornalismo a partir do chão que a gente pisa, a partir de outras referências que a gente acessa de passado, do que foi construído lá atrás, para nos impulsionar para frente e para o que a gente pode fazer agora. Essa é a grande contribuição”, acrescentou a jornalista.
“Jornalismo ancestral”
De acordo com Aline, a principal diferença do trabalho desenvolvido pelas organizações que integram a Coalizão está no foco exclusivo no interesse público. Segundo ela, todas as mídias do grupo surgiram a partir de uma demanda social, “de uma percepção de apagamento histórico de algumas narrativas”.
Assim, mais do que aplicar novas tecnologias para a produção de conteúdos, a Coalizão tem se importado em recuperar, desenvolver e compartilhar “tecnologias de relações” com o público dos territórios onde atua. Como exemplo, Aline destaca a “tecnologia ancestral da escuta”, que não se resume apenas a ouvir, mas implica reconhecer outros saberes, “entender o todo e ser sensível e respeitoso com o que o território me diz do que é importante contar”.
“A escuta genuína do nosso público e território significa partir de um outro lugar, de outros porquês para fazer jornalismo. É trazer as nossas fontes para construir com a gente os conteúdos, ter como especialista das reportagens outras faces, outras vivências. A dona de casa, por exemplo, é a nossa especialista quando a gente fala de economia. Muito mais do que um economista formado na USP [Universidade de São Paulo] ou com formações internacionais. Porque a dona de casa sabe falar muito bem sobre economia a partir do que a impacta no dia a dia, do não conseguir garantir a cesta básica dentro de casa”, comentou.
Ainda como parte das tecnologias ancestrais resgatadas pelos comunicadores da Coalizão, Aline cita a importância do exercício da coletividade e do trabalho coletivo.
“As referências eurocentradas que são impostas para a gente nos conduzem para o individualismo, para o vencer sozinho, para registrar o seu nome na história de uma forma muito isolada e destacada. E a gente exercita o saber ancestral da coletividade, do fazer junto, do se fortalecer, de ganha-ganha, da troca de saberes. Isso também é uma tecnologia ancestral que a gente adota e que está muito bem colocada na Coalizão: esse se juntar para fazer junto porque temos algo em comum de intenção”, sublinhou.
“Bambu-drone”
Outro ponto forte das organizações que compõem a Coalizão de Mídias é a elaboração de estratégias comunicacionais inovadoras aliando as novas tecnologias de informação a práticas e saberes historicamente constituídos nos territórios. Neste sentido, é comum que, além das páginas na internet e perfis em redes sociais, os conteúdos circulem também de modo “off-line”, através de faixas, carros de som, folhetos e fanzines.
No Quilombo Rampa, localizado no município de Vargem Grande, cidade a 172 km de São Luís no Maranhão, por exemplo, Raimundo José conta que a equipe da Rádio e TV Quilombo desenvolveu um “bambu-drone”, uma vara de bambu de 10 metros com um celular adaptado na ponta, para fazer imagens aéreas das rodas de tambor na comunidade. Segundo o comunicador, ao recorrer à cultura e saberes tradicionais da comunidade, a inovação não só resolve um problema como também aproxima o público e proporciona uma “real comunicação” com a comunidade.
“Um drone não faz parte da nossa realidade porque as pessoas aqui nunca tiveram acesso facilitado a essas tecnologias, mas uma vara de bambu de 10 metros é a nossa realidade. Usar a tecnologia ancestral que temos é base fundamental e ponto de partida para que a comunicação popular se firme. Porque a todo momento a comunidade se vê, ela vê algo que faz parte da vida dela e se sente representada. A gente vivencia uma realidade diferente, onde a gente já tem uma tecnologia ancestral. A tecnologia atual, moderna, tem que se adaptar” explicou Raimundo à Pulsar.


Democratização
De acordo com o comunicador da TV Quilombo as produções das mídias da Coalizão se distinguem dos conteúdos das “mídias hegemônicas” por serem pensadas “de dentro para dentro”. Segundo ele, ao defender a vida, o respeito, e a luta por direitos, a comunicação popular e comunitária “tem que ser voltada para buscar mostrar a realidade da comunidade, a realidade do lugar que a gente está inserido, como ele é”.
“Só tu, que vive aquela realidade, pode contar aquela tua realidade. Só tu pode contar essa história, porque é tu que sabe onde que está doendo, onde está seu desafio, sua dificuldade, mas também onde é o teu ponto forte. Ninguém pode contar melhor a tua história do que tu mesmo”, argumentou.
No mesmo sentido, Aline Rodrigues destaca o trabalho de educação midiática realizado pelos coletivos e organizações como forma de democratizar a comunicação dentro dos territórios. Segundo ela, para além de produzir conteúdo, o objetivo central das mídias periféricas, faveladas, indígenas e quilombolas é “fazer com que mais pessoas detenham o poder da comunicação“.
“As mídias hegemônicas forçadas a compartilhar o poder porque elas precisam estar nas redes e aí dar um poder pro público comentar. Mas não é todo mundo que acessa. É uma democratização da mídia até a página dois. Quando a gente atua com a educação midiática, o que a gente quer é compartilhar esse poder de comunicar. A gente atua com a informação, mas convida outras pessoas também pra que elas, a partir delas, também comuniquem e contem sua versão da história”, ressaltou.
Ainda sobre a luta pela democratização da comunicação, a jornalista reforça que, além da troca de experiências e da produção coletiva de conteúdos, a Coalizão de Mídias também pretende participar da construção de políticas públicas voltadas para o fomento e sustentabilidade de mídias comunitárias e populares. De acordo com ela, trata-se de um movimento fundamental para garantir uma atuação “mais digna e respeitosa” dos profissionais envolvidos.
“As mídias hegemônicas foram super apoiadas por governo, iniciativa privada, para se manterem fazendo o que fazem. Então, a nossa intenção é que a gente dispute esse lugar de acessar recursos para fazer o nosso trabalho de uma forma mais respeitosa. De uma forma que nos permita suprir as nossas necessidades básicas como profissionais e pessoas e, assim, entregar a nossa atuação da melhor forma”, concluiu.
Edição: Jaqueline Deister