

Dos noticiários televisivos aos grupos de Whatsapp, a imagem do corpo ferido de Lázaro Barbosa sendo arrastado por policiais até a viatura do Corpo de Bombeiros circulou por todo Brasil como uma espécie de cena final de um enredo dramático produzido ao longo de vinte dias de perseguição. Apontado por parte da imprensa como “serial killer”, “maníaco” e “psicopata”, o homem de 32 anos foi morto na última segunda-feira (28), em Águas Lindas de Goiás, no interior do estado de Goiás, com mais de 38 tiros disparados por policiais.
Lázaro era acusado pelos crimes de homicídio, roubo e estupro e ocupou o centro das atenções não apenas dos 270 agentes envolvidos na operação de busca, mas também de milhares de brasileiras e brasileiros diariamente municiados por coberturas ao vivo com direito a comentários de “especialistas”, imagens de helicóptero, satélite e até selfies de policiais.
Desde os primeiros dias de perseguição, a cobertura jornalística do “caso Lázaro” e sua repercussão nas redes sociais tem provocado uma série de análises por parte de profissionais e pesquisadores da comunicação. O sensacionalismo em torno do caso e a falta de compromisso com a devida apuração dos fatos e questões que circundam os crimes têm sido os principais pontos de crítica.
Ficção e espetáculo
Para Tatiana Lima, mestre em Mídia e Cotidiano e doutoranda em Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), a cobertura realizada por boa parte das empresas de comunicação serviu mais à desinformação do público do que à informação propriamente.
Segundo a jornalista, o que se viu nos noticiários foi a transformação da perseguição policial em um espetáculo midiático semelhante à séries e filmes de ação. Ao articular estereótipos e preconceitos presentes no imaginário social, como “o mocinho e o bandido” ou o criminoso astuto que engana a polícia enquanto foge, tais noticiários teriam produzido uma transposição do mundo da ficção para o mundo real. O que, para a pesquisadora, é extremamente preocupante pois reforça processos de criminalização e desrespeito aos direitos humanos.
“Esses elementos vão transformando o que seria a perseguição e a prisão de uma pessoa que cometeu ações criminosas – que precisa responder a um processo, ser acusada, julgada e sentenciada a uma pena – em um trailer de filme. Mas a gente tem que lembrar que nos filmes não existe direito humano. Você já viu alguma entidade de direitos humanos entrando numa cena de filme? Não existe! Como isso não existe, em geral o desfecho é a morte do criminoso. É esse gozo de justiça”, pontua.
Tatiana ainda acrescenta que a falta de responsabilidade na cobertura jornalística incide diretamente sobre as redes sociais agravando o processo de banalização da violência através das mídias.
“Antes mesmo de passar no noticiário a prisão e morte do Lázaro, eu soube por grupo de Whatsapp. Já estavam compartilhando imagens e vídeos dele morto, ensanguentado. A perseguição a ele foi tão midiatizada que virou comentário, brincadeira, virou meme, virou figurinha que as pessoas passam por whatsapp e, por fim, agora ele virou um corpo morto”, ressalta a pesquisadora.
“Mídia justiceira”
Pedro Aguiar, professor de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), repara que a história de Lázaro não é inédita no Brasil, mas se assemelha a outros casos de “bandidos midiatiazados”, isto é, casos em que a imprensa assumiu um comportamento sensacionalista que valorizava a dramaticidade em detrimento de soluções institucionais como devido processo legal, julgamento e prisão dos acusados.
Leia mais: Apresentador Sikêra Jr perde anunciantes após discurso homofóbico em rede nacional
Como exemplos, o professor recirda a história de Lúcio Flávio, nos anos 70, Leonardo Pareja, nos anos 90, e de Fernando Dutra Pinto, nos anos 2000. A diferença, contudo, seria a presença e o volume de informações compartilhadas nas mídias sociais. Segundo ele, as lives e selfies de policiais, testemunhas e moradores acrescentam mais material midiático ao caso do que a imprensa profissional jamais foi capaz de produzir nas décadas anteriores.
O problema principal, de acordo com Aguiar, seria “essa ideologia do justiçamento, pré-moderna, pré-iluminista, que se entranhou de tal forma na sociedade que mesmo esses usuários autônomos acabam reproduzindo discursos da violência, especialmente em forma e conteúdo dos programas policialescos. Muita gente desconhecida quer ser um mini-Datena ou um ‘my own personal’ Sikêra Jr.”.


O pesquisador lembra que, como produto da modernidade e inspirado nos princípios iluministas do século XVIII, o jornalismo traria consigo a missão de “esclarecer o mundo”. No entanto, parece saber lidar melhor com personagens, figuras palpáveis e reduções do que com situações complexas, estruturais e abstratas. Em relação ao caso de Lázaro, Pedro comenta que é mais fácil para a imprensa “lidar com Lázaro Barbosa como um estereótipo de psicopata, ou serial killer, como foi chamado, do que apurar se de fato ele estava a serviço de algum fazendeiro local, com o objetivo de aterrorizar outros proprietários de terra da região e baixar o preço para especulação fundiária – como chegou a ser especulado”.
Ainda sobre a cobertura do caso, Pedro chama a atenção para a preponderância das declarações de órgãos oficiais na apuração e produção das notícias. O que, segundo ele, não acontece simplesmente por espontaneísmo e conveniência dos profissionais da imprensa, mas porque existe todo um sistema econômico de comunicação montado para favorecer o oficialismo e, indiretamente, atropelar “o papel original da mídia como intermediária, do jornalismo como ‘mediação’”.
Violação de direitos
Nesse sentido, a professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Janaine Aires, observa que, no Brasil, a cobertura policial tem como principal característica a violação de direitos humanos. Mais que isso, segundo a pesquisadora, a dinâmica de produção de notícias – em especial a dos programas populares sensacionalistas (policialescos) – é intimamente relacionada e aliada à dinâmica policial.
“A dinâmica da cobertura é pautada pela própria dinâmica policial. Não há uma investigação sobre a dinâmica, não há uma discussão sobre a própria dinâmica mais fortemente falando”, afirma.
Ainda de acordo com Janaine, tal associação contribui para reforçar pautas de criminalização da pobreza, de violação de direitos humanos e, inclusive, a questão do armamento da população, que voltou à tona desde a ascensão da extrema direita no Brasil.
Leia mais: Rio de Janeiro avança no debate em defesa da comunicação popular e comunitária
Em relação à cobertura da busca a Lázaro, a jornalista se mostrou preocupada com simbolismo que envolve o caso e que se faz representado, por exemplo, pela comemoração dos agentes que o assassinaram e pela adoção de expressões como “CPF cancelado”, que, aliás, foi utilizada pela própria Presidência da República ao comemorar a morte de Lázaro pelas redes sociais.
Sobre a influência cada vez maior dos programas policiais sensacionalistas, Janine verifica que, ao longo dos últimos anos, eles tem ampliado a capacidade de influência e articulação na sociedade para muito além do campo da comunicação. A pesquisadora destaca, por exemplo, a estratégia de produção dos programas que abarca tanto a televisão como a internet.
“Além de serem veiculados diariamente pela TV e internet, eles são construídos de tal maneira que o discurso elaborado ali reverbera em outros contextos, especialmente o Whatsapp. Os discursos que são elaborados ali para comentar casos e situações diversas, são pincelados, recortados e distribuídos a partir dessas novas plataformas”, explica a jornalista, que ainda destaca a a dificuldade de regulamentação que tais estratégias impõem.
Como ponto preocupante, Janaine também considera as articulações políticas que direta ou indiretamente definem o modo como as notícias são apresentadas em tais programas. A tática de comunicadores e apresentadores que se valem da visibilidade nas mídias para ascender politicamente é, por exemplo, uma das questões centrais nesse sentido.
“Nós estamos falando de uma classe política muito coesa e muito significativa que, inclusive, já está presente no Congresso Nacional há muito tempo. Não à toa esses atores estão diretamente relacionados também à ascensão da extrema direita no Brasil, mais recentemente, e muitas vezes se confundem com a bancada do boi, com a bancada da bala e com a bancada ruralista essencialmente”, detalha.