No dia oito de junho é comemorado o Dia Mundial dos Oceanos. A data foi instituída durante a Eco-92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento realizada em 1992 no Rio de Janeiro. O objetivo era promover a conservação de espécies e habitats marinhos, diminuir a poluição e a escassez de recursos causada pela sobrepesca.
Quase 30 anos depois, em 2021, no Brasil, a data também serve para milhares de famílias cobrarem justiça pelo maior derramamento de petróleo da história do Atlântico Sul. Instalada em novembro de 2019, meses após o vazamento que atingiu as praias de 130 municípios em 11 estados do país, a CPI do Óleo foi encerrada em abril deste ano sem apresentar qualquer conclusão. Enquanto faltam respostas sobre o maior crime ambiental do Brasil em extensão – com mais de três mil quilômetros de litoral atingido – sobram exemplos de comunidades tradicionais que há quase dois anos convivem com a doença e a pobreza geradas pela contaminação do óleo.
Rastros do crime
Com 55 anos, Martilene Rodrigues, pescadora artesanal da comunidade de Caponga, no Ceará, conta que até hoje as pescadoras e pescadores da região não se recuperaram dos impactos produzidos pelo vazamento. Segundo ela, além da morte de várias espécies marítimas, a poluição dos ecossistema costeiros, como praias, estuários e manguezais, resultou em uma queda acentuada na venda do pescado, com índices de até 90% de diminuição nos períodos mais críticos. De acordo com pesquisa realizada em 2020 pela Fundação Joaquim Nabuco, em nove estados do Nordeste 67,5% dos pescadores artesanais disseram ter tido queda de renda por conta do petróleo nas praias. A redução da renda média entre os pescadores foi de 37,28%.
“A gente viu mulheres chorando porque esse ano não tiveram dinheiro para comprar material para os filhos estudarem”, relata Martilene, que lembra que as mulheres são as que mais têm sofrido nas comunidades pesqueiras. De acordo com ela, a renda obtida com o pescado, sobretudo o marisco, era o que garantia a autonomia financeira de grande parte das pescadoras artesanais, afastando-as de contextos de violência física, psicológica e patrimonial.
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A integrante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) também chama atenção para a questão da saúde das pescadoras e pescadores. Em primeiro lugar, pela exposição prolongada ao óleo.
“Com a chegada das primeiras manchas, os pescadores e pescadoras tiveram que colocar seus corpos na água para impedir que esse óleo avançasse para as áreas de pesca. Tocaram fisicamente no óleo sem nenhuma proteção, usando o que tinha: pá, enxada, saco de lixo. O governo só apareceu depois do óleo quase todo coletado”, conta.
Martilene explica que, além das doenças de pele provocadas pelo contato direto com o petróleo, a preocupação maior se dá no longo prazo pois, segundo ela, ainda existem áreas profundas e de difícil acesso onde não foi possível retirar o óleo. O risco, então, seria da ingestão continuada de pescado contaminado.
“A gente não sabe como vai ser a saúde desses pescadores e pescadoras daqui para frente. Porque a gente é quem mais consome pescado. Diferente das pessoas que vão para a praia e comem uma ou outra vez, nós comemos todos os dias! Então, não sabemos se estamos sendo envenenados ou não”, destaca a pescadora.
Ainda sobre a saúde das comunidades pesqueiras, Andréa Rocha, do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), chama atenção para o quadro de insegurança alimentar que se instalou ainda em 2019, com a queda das vendas de pescado, e que se agravou com o início da pandemia de Covid-19. Andréa conta que, com a impossibilidade de pescar, alguns pescadores tentaram mudar de atividade, mas tiveram dificuldade devido ao cenário de desemprego no país, o que reforçou ainda mais o estado de adoecimento nas comunidades.
Os problemas também se repetiram em relação ao acesso ao Auxílio Emergencial oferecido pelo Governo Federal durante a pandemia. A falta de acesso à internet e à documentação exigida, fez com que muitos pescadores ficassem de fora do auxílio. Inclusive, muitos também não tiveram acesso ao Auxílio Emergencial Pecuniário a pescadores atingidos pelo petróleo devido às dificuldades para tirar o Registro Geral de Pesca (RGP), documento solicitado pelo Governo para concessão do auxílio. Segundo Andrea, a questão do reconhecimento e registro oficial dos pescadores e pescadoras têm sido denunciada aos órgãos de Justiça desde 2019, mas permanece sem solução.
Impunidade e invisibilidade
Quase dois anos após o aparecimento das primeiras manchas de petróleo no litoral brasileiro, Andréa afirma que as principais marcas deixadas são da impunidade e do racismo ambiental. Ambas representadas pela falta de vontade política e incapacidade do Estado brasileiro para lidar com a questão socioambiental em seu território.
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No primeiro caso, a representante da CPP destaca o encerramento da CPI sem que os parlamentares apontassem qualquer responsável pelo que ela chama de “crime-desastre” do petróleo. “O processo foi encerrado sem apurar quem foi que causou isso. Não se sabe! É assim que funciona? Um crime dessa dimensão passar batido dessa forma?” questiona.
Já o racismo ambiental, Andréa explica que se dá na invisibilidade e discriminação em relação aos pescadores artesanais, em especial da região Nordeste. Ela relembra a demora para o acionamento do Plano de Contingência nas primeiras localidades afetadas.
“Se fosse um vazamento que acontecesse num local onde as pessoas brancas e ricas, de outra classe, vivessem, o tratamento seria outro. Houve negação da dimensão do impacto. Durante muito tempo foi dito que as comunidades estavam mentindo, que não havia óleo. A imprensa mostrava o óleo chegando e estavam preocupados com as praias, com o turista que chega ali na comunidade para apreciar, para contemplar, uma vez no ano, duas no máximo. Mas quem tem a sua vida dependente daquele território, não foi visto. Mesmo ele já ali, pegando petróleo e arriscando sua vida”, afirma a integrante do do Conselho Pastoral dos Pescadores.
Diante da ausência de solução para o crime ambiental, bem como a falta de assistência às comunidades pesqueiras, uma série de organizações sociais lançou, em 2020, a Campanha Mar de Luta. Uma iniciativa cuja principal reivindicação é a justiça para as populações que tiveram seus direitos violados após o vazamento, mas que também aponta para a defesa dos territórios em que vivem pescadores e pescadoras artesanais.


Andréa, que também é coordenadora da Campanha Mar de Luta, ressalta que os pescadores artesanais são fundamentais para a economia nacional, com produção de cerca de 70% do pescado consumido no país. Além disso, são também elementos importantes da cultura nacional, pois em seu modo de vida preservam e transmitem, geração após geração, uma série de saberes, fazeres e sabores tradicionais que fazem parte do patrimônio histórico e cultural brasileiro.
Por fim, ela ainda destaca a responsabilidade ambiental das comunidades pesqueiras. “Os pescadores têm uma relação muito peculiar com seus territórios, com o rio, o manguezal. É um lugar sagrado. As comunidades pesqueiras, as marisqueiras, os pescadores, as pescadoras, eles são parte disso. Eles são protetores, guardiões desses lugares. É uma relação de respeito, de cuidado. Eles sabem que se não protegerem aquele ambiente, a sua própria existência também está ameaçada”, relata.
Pela reabertura da CPI
Em abril deste ano, quando a CPI do Óleo foi encerrada por perda de prazo de renovação, a Campanha Mar de Luta lançou uma nota de repúdio exigindo a reabertura da CPI. De acordo com o documento: “Ao permitir o encerramento da CPI, o Congresso se torna cúmplice da desastrosa política ambiental do desgoverno de Bolsonaro e do seu Ministro inimigo do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Compactua também com o empobrecimento e adoecimento das comunidades pesqueiras impactadas”.
Criada em novembro de 2019 na Câmara dos Deputados, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Óleo, chegou a realizar 15 reuniões e audiências públicas até que teve as atividades suspensas, em março de 2020, por causa da pandemia da Covid-19. Segundo informações do Marco Zero Conteúdo, em 2021, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), chegou a requerer a prorrogação de funcionamento da CPI por mais 60 dias. Embora o requerimento tenha sido aprovado, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocou a questão para ser votada um dia depois do prazo já encerrado.
A CPI pode ser reaberta através do apoio de pelo menos 171 dos 513 deputados da Câmara dos Deputados, ou pelo acionamento do Ministério Público Federal (MPF) através da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, que trata de povos e comunidades tradicionais, e através da 4ª Câmara, que trata das questões ambientais.