Mónica Valdés*
Após seis décadas de conflito armado, a Colômbia sofreu graves violações dos direitos humanos. Nesta ocasião, durante a greve nacional, o cenário mudou. O campo não tem sido mais o principal local de assédio e violência. São nas cidades e são os jovens que recebem os graves impactos de um tratamento de guerra diante da ordem de militarização do governo de Ivan Duque. A política adotada para conter os protestos matou, pelo menos, 42 pessoas no mês passado.
Como um espelho do passado, viu-se o uso excessivo e ilegal da força pública, uma repressão coordenada com civis armados. Diversas evidências divulgadas em vídeo mostram civis escoltados pelas autoridades atirando contra os manifestantes. Até o momento, não houve nenhuma declaração oficial, rejeição ou explicação desses eventos que lembram o surgimento do paramilitarismo na Colômbia.
A Polícia Nacional e, em particular, o Esquadrão Móvel Antidistúrbio (ESMAD), é o principal agressor com um número assustador de pelo menos 3.692 atos de violência policial.
A Organização Não Governamental (ONG) Temblores e o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz) registraram as graves violações de direitos humanos e apresentaram uma carta, datada de 1° de junho de 2021, ao Parlamento Europeu. O conteúdo do documento será encaminhado à delegação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que virá à Colômbia.
Um mês após a greve nacional, os números falam por si, mas também revelam práticas sistemáticas:
1.133 vítimas de violência física;
45 homicídios supostamente cometidos por membros da Força Pública;
1.445 prisões arbitrárias contra manifestantes;
648 intervenções violentas no quadro de protestos pacíficos;
62 vítimas de ataques oculares;
175 tiros com arma de fogo;
25 vítimas de violência sexual;
6 vítimas de violência de gênero.
A questão do desaparecimento forçado é muito mais complexa porque se refere, principalmente, aos jovens que foram capturados e que estão privados de comunicação com advogados e entes queridos.


O Ministério Público colombiano anunciou que há pelo menos 129 pessoas nesta situação, enquanto a ONG Indepaz informa que existem 346 desaparecimentos.
De acordo com as convenções internacionais contra o desaparecimento forçado de pessoas, este crime contra a humanidade é tipificado quando a privação de liberdade ocorre sob qualquer forma: prisão, detenção, sequestro, seguido da recusa de reconhecimento dessa privação de liberdade ou ocultação de paradeiro.
O crime pode ocorrer por meio da atuação de agentes do Estado ou de pessoas físicas que atuem com o apoio, autorização ou consentimento do Estado. Durante a greve nacional, defensores dos direitos humanos solicitaram a busca imediata e sem demora das pessoas denunciadas.
O assassinato de jovens que exerceram seu direito constitucional de protestar, estabelecido no Art. 37 da Constituição Nacional da Colômbia, já foi silenciado em outras ocasiões, como no caso do jovem Dylan Cruz, assassinado por um agente da ESMAD em novembro de 2019.
Os crimes graves aumentam ao mesmo tempo que cresce a compra de armas. De acordo com o meio digital independente Cuestion Pública, entre 2017 e 2021, 20 entidades estatais assinaram pelo menos 30 contratos e duas ordens de compra por $ 45.684.261.058 pesos colombianos , ou seja, cerca de $12.512.807,74 dólares para adquirir armas “não letais” para a polícia e a ESMAD.
Na verdade, “entre os contratos milionários de armas não letais” estão também espingardas calibre 12, a mesma com que um agente da ESMAD atirou na cabeça de Dylan.
Por que a greve?
A greve começou no dia 28 de abril de 2021 com a rejeição da reforma tributária apresentada pelo governo de Iván Duque ao Congresso. Foi a gota d’água que desencadeou as manifestações: mais impostos para alimentação, serviços funerários em meio a uma pandemia, serviços públicos, pensões para aposentados, cinema, teatro e até esportes. Enquanto os bancos eram ainda mais beneficiados, assim como os impérios econômicos, como o grande capital do setor do agronegócio e grandes coorporações financeiras, obtendo redução de impostos anuais.
Tudo isso combinado com a rejeição da corrupção institucional na época da Covid – 19 e o superendividamento do Estado com a compra de, por exemplo, aviões de guerra em um momento em que acordos de paz deveriam estar sendo implementados.
O repúdio aumentou quando, em entrevista, o ministro da Fazenda Alberto Carrasquilla, não soube responder corretamente quanto valia uma dúzia de ovos, o que demonstrou o seu descaso com a realidade colombiana.
Além disso, foram insistentes as críticas por seu vínculo com o escândalo dos paraísos fiscais ‘Panama Papers’, desde 2011, expondo sua sonegação fiscal. Tudo isso aliado à reforma fracassada que tributava os mais pobres, mas isentava os mais ricos, acabaram por desacreditá-lo e reduzir seu status político à frente do Ministério da Fazenda. Por fim, ele renunciou.
A comissão de greve formada em sua maioria por dirigentes sindicais e estudantes divulgou uma lista de petições que pediam principalmente a queda da reforma tributária, do projeto de lei de saúde que acabaria com os programas públicos de vacinação para deixá-los nas mãos de empresas privadas e questionava o desaparecimento do Instituto do Câncer e a liquidação de mais de 1000 hospitais públicos, entre outros desastres.
Essas duas iniciativas foram caindo enquanto os jovens de várias regiões, mas, principalmente, de Cali, Bogotá, Pereira, Ibagué, Bucaramanga, aumentavam os decibéis de seus gritos. Com 42% da população colombiana vivendo na linha da pobreza, seus pedidos têm sido basicamente para aliviar a fome e melhorar o acesso à educação, saúde e trabalho.
O Comitê de greve e os agora chamados “pontos de resistência” onde proliferam meninos de bairros pobres, junto com estudantes universitários, indígenas, camponeses e afro-colombianos têm três pontos de convergência: o clamor por uma renda básica, a reforma policial e a abolição do ESMAD por uma condenação da violação sistemática dos direitos humanos pelo Estado.
Apesar do acordo de paz assinado em 2016 com os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), ficou em evidência a necessidade de superar a guerrilha e aprofundar a resposta pautada no diálogo como queriam a academia, a comunidade internacional e figuras religiosas como Monsenhor Darío Monsalve, o comissário da verdade Francisco de Roux SJ e Monsenhor Héctor Fabio Henao.
Primavera democrática
As novas gerações estão mudando a história? Há uma percepção otimista apesar dos altos custos em termos de ataques, perseguições e estigmatizações que meninos e meninas sofreram, mesmo fora das manifestações.
No entanto, vozes otimistas são ouvidas e fóruns, entrevistas, expressões artísticas se disseminam por todo o território nacional: cidades, vilas, viadutos, bairros e recantos, em uma demanda por reivindicações multicoloridas que não buscam mais algo específico, mas transformações estruturais.


O Centro Nacional de Consultoria (CNC) realizou esta semana o levantamento: “A democracia está em risco ?” em que também foi apurada a opinião dos cidadãos sobre os protestos, se concordam ou não com as manifestações, sobre os bloqueios e se saíram às ruas para protestar.
Mais de 60%, nas diferentes faixas etárias, consideram que a democracia está em risco neste momento, questionados se acreditam que a greve nacional fortalece ou enfraquece a democracia, a maioria considera que a greve a fortalece. Quanto mais jovem, maior o percentual dessa percepção, chegando a até 76% nas pessoas entre 18 e 25 anos.
Segundo a pesquisa, 73% dos colombianos apoiam o protesto social, rejeitam o uso da força pública para desativar as barricadas e até 79% veem de forma negativa as saídas dadas pelo governo para a greve.
Com a exposição midiática privilegiada, tem-se visto o rosto de uma sociedade alimentada por discursos de ódio e desprezo aos manifestantes, à população negra e indígena e, inclusive, que é justificada a violência contra esses grupos. Já outra parte da população, mais moderada, sem radicalismos, também manifesta os prejuízos econômicos e de mobilidade decorrentes da greve e defende um acordo.
Um ponto de inflexão seria a oportunidade de chegar a prosperar o diálogo e a negociação efetiva com as instituições, o comitê de greve e a grande mobilização juvenil. Mas também é necessário o debate público ser sustentado para as próximas eleições presidenciais em 2022.
O protesto, a onda comunitária, a primeira linha, os portos de resistência … são algumas das palavras que hoje compõem o léxico diário. Mas também: estigmatização, repressão, vandalismo, bloqueios, carências, despotismo, a noção de “inimigo interno”, violações, gases, armas e morte.
Sem dúvida, a credibilidade do governo Duque e o uribismo que o levou ao poder e os sustenta estão seriamente prejudicados, mas a urgência de ouvir os jovens e responder às suas demandas de histórica falta de proteção parece cada vez mais justificada. Desde o início dos protestos deste ano e nas manifestações de novembro de 2019 e setembro de 2020, os jovens gritam “Estão nos matando” em um grito de vida que não para, porque se não os matam os grupos armados de narcotráfico e crime, os matam as balas oficiais.
A voz dos jovens, que representa quase 35% da população, está sendo ouvida. Aos poucos vão ocupando um lugar na agenda pública nacional reivindicando o seu excasso ou nulo acesso à educação, saúde, trabalho e participação. É a voz das ladeiras, do distrito, da geração que grita: “tiraram tanto de nós que até tiraram o nosso medo”.
De forma descentralizada e a partir da sociedade civil, surgem iniciativas para coletar problemas, necessidades e propostas dos jovens. Uma delas, “mobilizar a palavra” pretende ser aquele esforço sustentado por um diálogo de longo prazo que seja um passo em frente do protesto pela construção da cidadania e de uma agenda de inclusão social.
Essas iniciativas são um sopro de esperança de uma eclosão social que continua na resistência pacífica, que supera a repressão e a pandemia e que finalmente semeia os alicerces de uma geração que transita para não repetir os horrores da guerra e que abre espaço para a unidade.
Como escreveu recentemente o escritor William Ospina, em sua carta para Porto de Resistência, um lugar emblemático de concentração juvenil no leste de Cali:
“Eles são a voz de um país que descobre sua dignidade, finalmente reclamando o que nos devem há vários séculos; a pátria que todos merecemos; a felicidade que nos foi roubada; os mortos que os rios levaram; o pão que aqui não colocarama, apenas em poucas mesas e a educação que pintaram de luxo quando devia ser dado como o maior direito”.
*Mónica Valdéz é vice-presidenta da Associação Mundial de Rádiós Comunitárias da América Latina e Caribe (AMARC ALC)
**O artigo foi traduzido do espanhol