Um grupo de organizações, redes e movimentos sociais tem se mobilizado para impedir o cultivo e comercialização do trigo transgênico HB4 no Brasil. Segundo as entidades, além de riscos à saúde, o produto geneticamente modificado representa perigos também à biodiversidade, à economia e à soberania alimentar, já que o trigo faz parte da base da alimentação da maioria da população brasileira.
Na última semana, o coletivo encaminhou um ofício ao Presidente do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), o ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Rui Costa. No documento, as organizações reinvindicam o cancelamento da liberação do cultivo do trigo transgênico HB4 bem como a importação da farinha do mesmo produto.
O plantio do trigo HB4 no Brasil foi aprovado no último 1º de março pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), instância responsável pela liberação de organismos geneticamente modificados no país. As organizações denunciam que a decisão foi tomada sem análises técnicas e debates públicos suficientes.
O ofício também foi entregue a outros dez ministérios que compõem o CNBS, ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. Além da reconsideração da liberação, as entidades também cobram a realização de audiência com membros do CNBS e a suspensão dos efeitos da decisão da CTNBio.
Entre as organizações que assinam o documento estão a Associação Brasileira de Agroecologia, a Articulação Semiárido Brasileiro, Terra De Direitos, Associação Camponesa Nacional, Movimento Ciência Cidadã, Instituto Brasileiro De Defesa Do Consumidor e Associação Nacional De Pequenos Agricultores.
Decisão
O prazo para o CNBS decidir sobre o plantio de trigo transgênico no país termina no dia 5 de abril. Se o Conselho não se manifestar até a data, fica estabelecida a decisão da CTNBio de liberar o cultivo do produto no país.
De acordo com Larissa Packer, advogada da organização internacional Grain, a expectativa é de que, no atual governo, o CNBS “possa retomar a sua atribuição como última e definitiva instância política em matéria de biossegurança para democratizar a avaliação e a decisão sobre a introdução de novas tecnologias que possam afetar a soberania tecnológica e alimentar da nação”.
“Muito além de uma questão meramente técnica, essa é uma questão política. Justamente no momento que nós voltamos para o Mapa da Fome, é importante realizar um amplo debate público com as organizações da sociedade civil, cientistas, autônomos, organizações especializadas, agricultores, enfim, todos os interessados para que se possa realmente colocar os diversos pontos de vista em relação à liberação deste trigo – desta tecnologia – e, em primeiro lugar, para se cumprir a lei. Para fazer com que realmente qualquer nova tecnologia que possa impactar a saúde e o meio ambiente passe pela devida análise de riscos”, explicou à Pulsar a integrante do Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Sobre o prazo para análise do CNBS, Packer sublinha que o Conselho pode analisar e anular a decisão técnica da CTNBio a qualquer tempo.
“Não só pode como deve. Qualquer ato administrativo que contenha vícios e irregularidades deve ser anulado pelos órgãos da Administração a qualquer momento, sem prazo algum”, frisou à Pulsar.
Ilegalidades
De acordo com o ofício encaminhado ao CNBS, o processo de liberação da importação da farinha e do cultivo do Trigo HB4 “está eivado de grosseiros vícios e ilegalidades, tanto sob o ponto de vista do devido processo administrativo, quanto sob o aspecto do mérito técnico da análise em biossegurança exigidos pela legislação em vigor”.
Um dos primeiros pontos levantados pelas organizações é o de que a decisão da CTNBio foi tomada com base em um processo de 2021, aberto exclusivamente para a importação da farinha de trigo transgênica da Argentina, e não para o cultivo do trigo HB4 em território brasileiro.
“A Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) é clara ao determinar que a análise de biossegurança e a decisão técnica devem se dar, caso a caso, segundo cada tipo de evento e conforme as distintas finalidades. O processo submetido ao órgão regulador deve ser ou para liberação da importação do produto derivado ou para plantio comercial, não cabendo ser as duas coisas ao mesmo tempo”, pontua o texto.
As organizações também criticam o fato de que a única audiência pública realizada ao longo do processo (em outubro de 2020) “não apresentou todos os elementos que garantiriam a lisura e transparência das informações para a liberação do trigo geneticamente modificado”. Neste ponto, as entidades destacam que “nenhum especialista em defesa do consumidor foi ouvido na referida audiência ou em qualquer momento da análise de riscos”.
“É no momento da audiência pública que discussões técnicas de gabinete ganham contornos democráticos, tanto ao abrir-se para informar a sociedade civil e pesquisadores independentes, assim como para receber questionamentos e novas informações, de modo a garantir o interesse público na tomada de decisões pela Comissão Técnica”, afirmam as organizações no ofício.
Ainda sobre este ponto, o documento reforça que, em 2021, 273 organizações e estabelecimentos da sociedade civil organizada assinaram um manifesto contra a liberação do trigo HB4 no país. No mesmo sentido, mais de 17 mil pessoas assinaram uma petição online coordenada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) sobre o tema.
Perigos
Em relação aos riscos à saúde, o texto encaminhado a Rui Costa ressalta que o trigo HB4 é modificado para tolerar o glufosinato de amônio, agrotóxico proibido na União Europeia desde 2009 por por estar associado à desregulação endócrina, alterações genéticas e danos ao fígado. O receio das organizações é de que a substância tóxica chegue à mesa da população na forma de pães, massas, pizzas, bolos, salgados, biscoitos, entre outros alimentos de consumo massivo.
Outra preocupação se refere à ausência de estudos nos diferentes biomas do país, o que impede a avaliação sobre o desempenho agronômico do trigo geneticamente modificado, assim como a previsão de riscos ao meio ambiente.
“Não houve pesquisas de campo e análises sobre possíveis efeitos adversos à biodiversidade. A eterna promessa envolvendo mais produtividade com menos oferta de água nunca se cumpriu com a soja ou o milho transgênico. Vai se cumprir com o trigo?”, questiona o agrônomo Leonardo Melgarejo, que integra o Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Soberania
Além dos riscos à saúde e ao meio ambiente, as organizações também salientam que a liberação do trigo transgênico HB4 também representa um risco à soberania do país, pois a introdução do produto estaria atrelada ao pagamento de royalties às empresas titulares da biotecnologia transgênica. Nesse contexto, as entidades apontam que o trigo HB4 poderia tornar o Brasil mais vulnerável às oscilações do mercado internacional e, com isso, o impacto da aprovação de trigo transgênico recairia no valor da comida.
“A conhecida e comprovada resistência adquirida pelas variedades transgênicas aos agrotóxicos a elas associados gera necessidade de aumento quantitativo do número de aplicações, como também qualitativo, passando ao uso de princípios ativos ainda mais tóxicos. Fato que, além de provocar maiores danos ao meio ambiente e à saúde, sem nova avaliação de riscos, agrava a dependência tecnológica do país, com um maior volume de pagamentos de royalties às empresas de biotecnologia. Empresas essas que dominavam em 2020 metade do mercado mundial de sementes comerciais e 62% do mercado de agrotóxicos no mundo”, explica o texto.