Movimento feminista, a conquista da Lei Maria da Penha, as histórias de ameaças e pedidos de socorro recebidos ao longo de 40 anos do programa Viva Maria e o futuro do rádio. Esses são alguns dos temas que constam nesta segunda e última parte da entrevista com a jornalista Mara Régia.
A trajetória de Mara nas ondas do rádio é atravessada pelas principais conquistas do movimento de mulheres após a redemocratização. Ela, além de informar, protagonizou momentos históricos na luta em defesa dos direitos das mulheres.
Leia e Ouça: “Programa Viva Maria foi uma caixa de ressonância para todas as nossas reivindicações”, afirma Mara Régia
Muito combativa, a comunicadora segue usando o microfone e também as plataformas digitais para reverberar a luta feminista e a urgente necessidade de fazer frente ao ultraconservadorismo trazido pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
Confira a entrevista.
Pulsar: Mara, qual foi o seu papel na mobilização pela criação da Lei Maria da Penha?
Mara Régia: Na verdade o que a gente fazia era ouvir as grandes pensadoras dessa proposta que estavam no front, pouca gente sabe, mas existiu um consórcio para a criação da Lei Maria da Penha e a escolha da Maria da Penha em si, do nome, foi justamente por força deste crime bárbaro que ela foi vítima. Eu participei via rádio das mobilizações, das tesses, de todo esse trabalho feito pelas grandes juristas.
Essas mulheres faziam parte de um grupo de trabalho interministerial e apresentaram a proposta da criação dessa lei para o enfrentamento da violência doméstica, nossa saudosa Nilcea Freire, que foi nossa representante na Secretaria da Mulher. Conseguimos esse projeto de lei pensado pelas organizações das mulheres, mas com muita participação da sociedade e também com a contribuição da bancada feminina do Congresso Nacional porque ali tinham mulheres sensibilizadas.
Foi absolutamente importante que essas mulheres que estavam atuando no Congresso Nacional abraçassem essa ideia muito rejeitada. Devemos principalmente às juristas feministas do Brasil essa atuação para fazer com que o presidente Lula [PT] conclamasse essa lei e nos fizesse avançar do ponto de vista da cidadania e ela é considerada a terceira melhor lei do mundo pela ONU [Organização das Nações Unidas].
Pulsar: Você deve ter visto, foi lançado um estudo da Rede de Observatório de Segurança que monitorou a violência contra as mulheres em cinco estados, São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Ceará e esse levantamento revelou que juntos, esses estados somaram 449 casos de feminicídio só no ano de 2020. Mostrando que a pandemia potencializou a violência contra a mulher. Na sua avaliação, como o movimento feminista pode agir para tentar evitar e conter esse avanço da violência e fazer com que esses números caiam?
MR: Eu sofro de impaciência histórica. Hoje a gente já tem uma lei contra o feminicídio, já temos essa tipificação e, a todo momento, você vai vendo que essa lei vai sendo flexibilizada, a própria Lei Maria da Penha, que as duras penas foi conquistada a partir, inclusive, da história de uma mulher que o sobrenome deveria ser resiliência, porque a Maria da Penha sofreu essa violência do ex-marido por duas vezes tentando matá-la. Ela não queria continuar casada, ela que era farmacêutica e teve essa tentativa de assassinato em 1983, não faltava quase nada para o crime prescrever e a gente conseguiu, nos minutos finais do segundo tempo, o que isso não acontecesse, acompanhamos a luta.
O movimento de mulheres deve muito também à deputada Jandira Feghali [PCdoB] que sempre lutou para o afastamento do agressor do lar, mas esses projetos eram sempre vetados porque a gente sabe da nossa representatividade no Congresso, apesar da luta, somos poucas, ainda estamos tendo que viver mais 180 anos para conseguir a paridade, o que é um absurdo.
Enquanto a gente vai obedecendo leis feitas, em grande maioria, por homens, vamos esbarrar nesses impedimentos, mas a questão da mulher serviu para unir de forma apartidária, todas essas lideranças, isso foi muito importante, muita luta, uma luta incansável.
Pulsar: Só para a gente recuperar, na sua avaliação, como que o movimento feminista poderia agir hoje dentro do contexto de pandemia, onde estamos percebendo que há um aumento da violência contra a mulher?
MR: A gente não se cansa de dizer que as mulheres brasileiras em sua grande maioria, aquelas que padecem de violência doméstica, dormem com o inimigo. Porque o feminicídio é cometido por um parceiro íntimo e a violência doméstica e familiar dá o tom da perversidade em que isso vem acontecendo em tempos de pandemia. Conforme você lembrou, a partir desse dossiê da violência, já sabemos que isso tem sido um desafio absurdo, tanto que estão sendo criadas até campanhas para que as mulheres que forem à farmácia comprar um remédio coloquem o símbolo da vênus, o sinal feminino com um batom na mão, para pedir socorro. Porque não está fácil.
O último dado que eu tinha do mapa de violência de 2015, eram quase cinco assassinatos a cada 100 mil mulheres, mas somos o país com o maior índice de homicídios, femininos. É um absurdo ocuparmos a quinta posição num ranking de 83 nações. É uma situação comparável a um estado de guerra civil permanente, agora, o que está na raiz disso? O machismo. E agora, nessa situação pandêmica, aliada a concessão de armas, onde isso vai parar?
O movimento é muito contundente em sua fala, nas suas propostas, em tempo de live, o movimento tem sido incansável em refletir sobre várias questões, desde a gordofobia, até os assédios no mundo do trabalho, chegando ao feminicídio como essa grande mácula, sem esquecer o racismo que também é uma coisa absurda. É uma realidade que nos indigna.
Pulsar: A gente fica na curiosidade, ao longo dessas quatro décadas de programa e lidando com essa temática da mulher, eu queria saber se em algum momento você chegou a receber pedidos de ajuda de mulheres vítimas de violência?
MR: Eu mesma fui vítima de ameaças via telefone, numa época em que você não tinha rede social para mandar seu SOS. Era por telefone mesmo, e o programa era uma referência em que as mulheres iam pedir socorro.
Na porta da rádio, às vezes eu chegava, e tinha um cidadão me esperando à espreita: – “A senhora que é a Mara Régia? Eu vim aqui porque a senhora está colocando coisa na cabeça da minha mulher, o rádio eu já quebrei, mas a próxima eu vou vir aqui pra quebrar a sua cara”.
Então, tinha esse tipo de ameaça e até eu tive num período em que pleiteava a delegacia em torno do caso da Thais Mendonça que tinha sido assassinada pelo filho do coronel, Marcelo Bala, eu recebia telefonemas anônimos de madrugada: – “Olha, hoje nós vamos matar você! Vamos fazer o mesmo que fizemos com Mario Eugênio”, o “Gogó das 7”. Ele fazia muito sucesso e nos anos 80 ele foi covardemente assassinado. E diziam que eu seria a versão feminina do “Gogó das 7” e comecei a ficar desesperada, depois ameaçaram raptar meus filhos, eu mandei as crianças para São Paulo para a casa da avó paterna.


Uma vez eu estava conversando com uma jurista e ela estava explicando como prestar socorro, o que fazer e as mulheres ligando e uma delas disse: – “Eu ‘tô’ acorrentada no pé da cama, meu marido sai e me prende aqui, agora que eu consegui me arrastar até o telefone!”, na época celular era um luxo. Então, vivemos uma época de muito constrangimento.
Agora, por incrível que pareça, eu tenho a sensação de que pelo fato de estarmos nas redes sociais, todo aquele esforço que a gente fazia para se concentrar, bater panela no terreno baldio, onde queríamos construir a nossa DEAM [Delegacia de Atendimento à Mulher], que hoje se resume a um clique numa plataforma de rede social, a pessoa acha que botando ali um like já resolveu aquele problema, o que é um engano, porque o que faz a luta crescer é o enfrentamento.
Pulsar: Qual o papel do movimento feminista, dentro desse contexto tão conservador, moralista, que está se apresentando hoje no Brasil?
MR: Nosso poder é o de articulação, a gente precisa cada vez mais se apossar desse pensamento filosófico, esse pensamento sociológico, dessa militância feminista que quase sempre bebe na fonte de trabalhos e pesquisas da maior seriedade para chegar aos grandes tribunais.
Não temos no horizonte, em função da pandemia, nenhuma grande conferência, mas a gente tem sempre uma forma de fazer chegar ao mundo o que se passa por aqui, e mesmo quando a ministra Damares vai abrir uma conferência na ONU [Organização das Nações Unidas], mesmo à distância, on-line, quando ela apresenta dados que são irreais sobre o trabalho que ela vem fazendo pelas mulheres do Brasil, isso não demora a ser desmascarado, mas, enquanto isso, a gente tem um desmonte terrível.
Pulsar: As redes sociais se tornaram protagonista no debate público nos últimos anos, seja pela disseminação de discurso de ódio, pela desinformação, eu queria saber de você qual o papel dos meios de comunicação tradicionais, como o rádio, num contexto político e social como o que vivemos atualmente?
MR: O rádio hoje tem se desdobrado numa infinidade de podcasts que fazem com que toda a linguagem radiofônica se revele na sua pujança através desse instrumento que virou febre. A mídia rádio, das comunitárias às comerciais, o jornalismo em geral, as emissoras de comunicação, estão passando por momento de desmonte, enfraquecimento, nada é favorável, mas eu penso que o rádio é insubstituível, ele tem essa magia que eu falei com você, porque ele é universal, toda a vez que você tem uma informação para ser disseminada você tem que usar um recurso que seja universal.
Para esse Brasil profundo que se recente até da falta de luz, as redes sociais funcionam, mas não com a sua potência, o caminho está dado, não tem volta, a gente sabe que a tecnologia só avança e ela só precisa que, da mesma forma que a gente aprendeu a ler as notícias em fontes confiáveis, em jornais, nos veículos de comunicação que têm um compromisso cidadão, a gente precisa criar uma consciência para sermos críticos ferozes dessa manipulação das fake news.