Trinta famílias de agricultores do assentamento 1º de Março, no município de Pitimbu, litoral da Paraíba, receberam, no início de agosto, os Títulos Definitivos (TD) das terras onde moram e produzem. A cerimônia de entrega foi realizada na escola municipal que funciona dentro da área de reforma agrária e contou com a presença de políticos e representantes dos governos municipal, estadual e federal.
A titulação das terras das famílias do 1º de Março faz parte do programa Titula Brasil, lançado pelo Governo Federal em dezembro de 2020 e regulamentado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em fevereiro deste ano através da instrução normativa nº 105. Enquanto o governo defende que o programa auxilia as famílias a “conquistarem o direito de serem donas de um pedaço de terra”, movimentos populares e organizações sociais alertam para a armadilha que a titulação de terras representa para a luta por reforma agrária no país.
O que está em jogo?
De maneira resumida, o Titula Brasil terceiriza aos municípios as atribuições de regularização fundiária de áreas da União. A instrução do governo autoriza o estabelecimento de parcerias entre o Incra e os municípios através de Acordos de Cooperação Técnica (ACT), sem previsão de repasse de recursos entre as partes e, a partir daí, o trabalho de vistoria local e checagem de dados para efetuação de titulação de terras passa a ser assumido pelos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRF). Ainda segundo a norma, tais núcleos devem ser formados por técnicos indicados pelas prefeituras de cada município.
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Para Gilmar Felipe, membro da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra na Paraíba (MST-PB), a política de ‘regularização fundiária’ encampada pelo governo Bolsonaro não beneficia em nada os agricultores, mas, pelo contrário, os coloca em uma situação de vulnerabilidade. Ele explica que a opção pela entrega de Títulos Definitivos (TD) ao invés das Concessões de Direito Real de Uso (CDRU) faz parte de uma estratégia do governo para se eximir das responsabilidades do Estado para com as famílias assentadas e recolocar as áreas conquistadas pela reforma agrária no mercado de terras.
“Na medida em que o agricultor pega o título, ele se torna ‘proprietário rural’ e perde direito a todas as políticas públicas que eram destinadas à reforma agrária e a ele como assentado. Então, de agora em diante, para ele acessar um crédito, qualquer valor que seja, ele tem que empenhar as terras nas instituições financeiras”, analisa.
De acordo com o integrante do MST, o ideal seria que a regularização das terras se desse através do CDRU, pois assim o assentado ou assentada permaneceria na lista das políticas públicas do Incra e teria condições de pressionar o órgão para a executar as medidas voltadas para os assentados. Nesse sentido, ele aponta que nos últimos cinco anos as famílias de pequenos agricultores têm atravessado um cenário de empobrecimento provocado, em grande parte, pelo desmonte e reorientação política do Incra.
Desinvestimento
Segundo a Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef/Fenadsef) e a Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (CNASI-AN), os recursos destinados a créditos, melhorias de assentamentos, monitoramento de conflitos fundiários e reconhecimento de territórios quilombolas sofreram cortes de até 90% durante o governo Bolsonaro. Ainda de acordo com as entidades, grande parte dos R$3,3 bilhões que o Incra recebeu em 2020, foi destinada ao pagamento de precatórios, isto é, dívidas com latifundiários que conseguiram reajustar na justiça o valor das indenizações pelas terras desapropriadas em anos anteriores.
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Gilmar observa, portanto, que diante da ausência de subsídios à agricultura familar, a tendência é que os novos proprietários rurais sejam obrigados a negociar as terras e que elas voltem para as mãos de latifundiários.
“Essa titulação vai beneficiar os grandes proprietários que vivem em torno dos assentamentos e vão poder adquirir terras baratas de forma fácil dos assentados. Porque se o assentado não tem condição de produzir, ele vai ter três caminhos: ou ele empenha suas terras para ter acesso a crédito, ou ele vende, ou vai ter que fazer parceria com usina de cana, por exemplo”, explica.
A verdadeira reforma agrária
Em relação à regularização fundiária no país, o agricultor lembra que a proposta de reforma agrária defendida pelo MST consiste na desapropriação de latifúndios improdutivos pelo Estado e no incentivo à produção da agricultura familiar, e não na privatização das terras como propõe o Titula Brasil.
“O real interesse do Governo é se livrar dos assentados, acabar com a reforma agrária e destruir os movimentos sociais de luta pela terra. Transformar as pessoas em pequenos proprietários rurais é criar uma ilusão na cabeça dos indivíduos, dizendo que eles agora podem ser igual ao latifúndio, que eles podem ser igual os fazendeiros, quando isso não é verdade. Isso vai contra tudo aquilo que a gente defendeu a vida inteira na nossa luta pela reforma agrária” conclui.
O assentamento 1° de Março é fruto de uma ocupação organizada pelo MST no dia 1° de março de 1993. As 34 famílias que participaram da ocupação permanecem até hoje no território. Segundo Gilmar, a principal característica do 1º de Março é a produção de alimentos. Dentre os principais alimentos cultivados nos lotes das famílias assentadas estão inhame, macaxeira, banana, acerola, milho, feijão, jerimum e mamão.
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Segundo o presidente da Empresa Paraibana de Pesquisa, Extensão Rural e Regularização Fundiária (Empaer-PB), Nivaldo Magalhães, três mil Títulos Definitivos devem ser entregues a pequenos agricultores do estado até o final de agosto. Em cerimônia realizada no município de Cruz do Espírito Santo, no final de julho, ele anunciou que a meta é entregar 15 mil títulos até o final de 2022. De acordo com Kleyber Nóbrega, o superintendente do Incra na Paraíba, a autarquia já formalizou acordos de cooperação técnica com 39 prefeituras do estado através do Titula Brasil.
Edição: Jaqueline Deister