Quatro em cada cinco redes comunitárias de internet no Brasil estão presentes em localidades de povos tradicionais como comunidades quilombolas, aldeias indígenas ou áreas ribeirinhas. Este é um dos dados apresentados pelo estudo “Redes comunitárias de Internet no Brasil: experiências de implantação e desafios para a inclusão digital” promovido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), por meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).
De acordo com o CGI, a pesquisa tinha como objetivos: detectar o estágio de desenvolvimento das redes comunitárias no país, compreender como funcionam (seus modos de operação) e os efeitos que geram nos territórios em que atuam; e identificar barreiras e maneiras de fomentar a sustentabilidade das redes. O levantamento mapeou 63 redes comunitárias em todas as regiões do Brasil e entrevistou gestores de 40 redes comunitárias entre novembro de 2021 e março de 2022.
Segundo o Comitê, as redes comunitárias de internet são, hoje, uma alternativa para promover a inclusão digital em regiões com pouca oferta de infraestrutura e serviços de Internet, e estão, em sua maioria (83%), presentes em localidades remotas e que apresentam maior vulnerabilidade: 40% delas em quilombos ou territórios quilombolas, 33% em aldeias ou territórios indígenas e 23% em áreas ribeirinhas.
Outro dado interessante é sobre o perfil dos gestores das redes, com 55% de pessoas que se declaram pretas ou pardas e 20% indígenas. Ainda sobre os gestores e gestoras, o estudo revela que 40% têm ensino superior e 33% pós-graduação.
Para entender mais sobre o que são e como funcionam as redes comunitárias de internet no Brasil, a Pulsar Brasil entrevistou o analista de informações do Cetic.br e um dos coordenadores da pesquisa, Fabio Storino. Na conversa, ele também comentou sobre as barreiras e desafios enfrentados pelas redes comunitárias bem como a importância das redes para o a inclusão social e o empoderamento das comunidades através da tecnologia.
Confira a entrevista a seguir:
Pulsar: Você pode explicar o que são as redes comunitárias de internet?
No levantamento que fizemos com gestores das redes, especialistas, membros do governo, da academia e de organizações da sociedade civil, nós identificamos três características comuns às redes comunitárias.
A primeira delas é o fato das redes não terem fins lucrativo. Em segundo, lugar, toda elas têm uma autogestão. Então é uma comunidade que se organiza pra resolver seus problemas e, nesse caso, uma comunidade que se organiza para montar essa rede comunitária. E um terceiro ponto é a ideia de algum grau de autonomia em relação à tecnologia e às decisões tecnológicas dentro dessa rede.
Um dos indicadores que a nossa pesquisa mostra é que as as redes comunitárias são, em grande medida, proprietárias dos equipamentos que elas usam para distribuir o sinal e conectar os domicílios. Em geral, são as pessoas da própria comunidade quem tomam as decisões. Às vezes num processo mais amplo e participativo, às vezes por meio de um conselho formado para gerir essa rede comunitária, mas sempre de maneira coletiva pela própria comunidade.
Às vezes a comunidade tem apoio externo em caso de problemas mais técnicos. Mas ela é autônoma nas decisões que toma em relação à rede.
Como funcionam essas redes? E quem são as pessoas que se beneficiam delas?
O estudo aponta que nós temos redes muito distintas operando em lugares muito distintos do Brasil. Temos redes operando em aldeias indígenas, em comunidades quilombolas, em povos ribeirinhos, na periferia dos centros urbanos, na área rural do país, em territórios ligados à produção agrícola… então você tem vários tipos e arranjos que vêm de uma comunidade local para resolver problemas por meio da tecnologia e dessa conexão entre as pessoas.
Inclusive, acho que mais do que redes de internet, são redes de conectividade, de usar a tecnologia para aproximar pessoas e resolver problemas da comunidade por meio da tecnologia.
E que uso as pessoas e comunidades têm feito das redes comunitárias de internet?
A gente tinha uma uma hipótese no início de que, basicamente, as redes comunitárias viriam para resolver um problema de falta de conexão ou de conexão precária à internet. Até porque muitas redes que identificamos no estudo operam em regiões com menor presença de internet nos domicílios, como, por exemplo, as regiões Norte e Nordeste do país.
Mas a internet em si não é o objetivo principal da rede, e isso, para mim, foi uma uma feliz surpresa. A internet está presente na grande maioria dessas redes como um dos objetivos, mas não é o principal. Em algumas redes nem é oferecida a conexão à internet.
De maneira geral, no Brasil inteiro, as redes comunitárias surgem para mobilizar e articular as comunidades por meio da tecnologia. Então é mais do que um “mini-provedor” ou uma grande “lan house comunitária”.
As duas maiores finalidades apontadas pelas pessoas entrevistadas no estudo foram: promover eventos, festividades e outras atividades culturais daquela comunidade; e mobilizar os membros da comunidade sobre temas de interesse local através, por exemplo, de campanhas de mobilização.
Portanto, mais do que conectar a comunidade ao mundo por meio da internet – e isso acontece em mais de 80% dessas redes – as principais finalidades das redes comunitárias são a articulação e mobilização da comunidade por meio da tecnologia. É, por exemplo, disponibilizar um repositório com leituras, fazer circular campanhas… em muitos casos essas redes possuem TVs e rádios comunitárias associadas a elas para circular notícias, informação e até para promover negócios locais.
Dessa forma, a rede comunitária promove tanto essa conexão com o mundo externo, como também intensifica a comunicação e a circulação de informações entre os próprios membros da comunidade. Eu acho que essa foi uma das descobertas mais interessantes da pesquisa.
Como essas redes se sustentam? Existe alguma política pública no Brasil ou no exterior de incentivo à criação de redes comunitárias de internet?
Fora do do Brasil existem vários modelos de incentivo à criação e operação de redes comunitárias. Na Argentina, por exemplo, você tem uma um reconhecimento formal dos reguladores de telecomunicações sobre as redes comunitárias. No Chile, as redes comunitárias podem buscar financiamento a partir de fundos governamentais como o Fundo para Desenvolvimento das Telecomunicações. Esse poderia ser um caminho no Brasil.
A nossa pesquisa identificou que a maioria dessas redes operam com um custo abaixo de R$1.000,00 por mês. Então uma política pública neste sentido de fomento seria muito barata para governos de vários níveis (municipal, estadual, federal) e teria um impacto muito grande nas comunidades.
Alguns países como o Canadá, a Espanha e o Reino Unido oferecem deduções de impostos para investimentos em redes comunitárias. Nós poderíamos pensar, por exemplo, nos equipamentos iniciais para montar a rede, que costumam ser caros. Quando você precisa fazer um acesso via satélite, por exemplo, o investimento inicial é alto.
Existe ainda um outro desafio em relação à manutenção e sustentabilidade a longo prazo dessas redes. Muitas conseguem fazer uma captação inicial de recursos, mas não contam com planejamento de segurança para investimentos necessários ao longo da vida de operação. Então muitas delas conseguem operar nos primeiros anos e depois acabam não conseguindo se manter no longo prazo por não terem recursos para repor equipamentos que quebram ou que precisam ser atualizados em termos tecnológicos.
Nesse sentido, poderia existir um apoio por parte de órgãos como o SEBRAE [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], por exemplo, de capacitação dos gestores dessas redes para fazer um planejamento financeiro de longo prazo. Hoje em dia, algumas dessas redes fazem uma captação na própria comunidade através de contribuições simbólicas de R$20,00 ou R$30,00 para apoiar essa operação do dia a dia.
O que você destacaria como desafios das redes comunitárias hoje?
As redes comunitárias têm como objetivo não apenas fazer a informação circular entre a comunidade, mas fazer com que a a comunidade, por meio da tecnologia, consiga resolver seus problemas.
Hoje você tem muita gente que já mexe no celular, já tem acesso à internet, mas usa aquele básico, aquele “feijão com arroz” da internet, né? Acessa redes sociais, algum site de notícia, algum aplicativo de mensagens instantâneas, mas ainda tem dificuldade de ler criticamente, de entender o que está além, de entender as notícias, de saber como verificar a origem de um link ou de uma fonte de uma notícia. Esse tipo de conhecimento técnico permite as pessoas se empoderar e tirar mais proveito das ferramentas de tecnologia e da internet, como, por exemplo, acessar um serviço público, fazer uma transação financeira, usar um Pix, criar um grupo, disseminar mensagens, articular campanhas e montar um site mesmo que básico para vender produtos da comunidade.
O desejo das redes é promover esse tipo de empoderamento da comunidade em relação à tecnologia, mas nem todas possuem as condições e conhecimento para isso. Então esse tipo de apoio, para potencializar o impacto o uso da tecnologia pelas pessoas, é uma frente interessante para as redes comunitárias no Brasil.
O que é preciso e quais são os primeiros passos para montar uma rede comunitária de internet?
A quem tem interesse em montar uma rede comunitária, eu recomendo baixe essa nossa publicação que está disponível gratuitamente no nosso site: www.cetic.br
Lá nós mostramos as diversas fases de constituição dessa rede. Desde a fase inicial de planejamento até a fase de operação. Com destaque, inclusive, para as várias dimensões que é preciso atentar: a dimensão social da articulação, ou seja, como articular a comunidade para desenvolver uma rede comunitária; a dimensão mais técnica e tecnológica; e também uma dimensão regulatória, que diz respeito às questões legais e normativas envolvidas na criação e operação dessas redes.
Também abordamos uma dimensão material e financeira em relação aos recursos necessários e ao planejamento para conseguir fazer com que a rede tenha uma sustentabilidade. E, por fim, uma dimensão territorial e de infraestrutura, porque é preciso esse olhar para a comunidade e o seu entorno, para as características daquele território e para como essa rede comunitária se adequa a essa realidade da local.
Edição: Jaqueline Deister