

No dia 14 de setembro, Mara Régia completará 40 anos à frente do programa Viva Maria, referência na defesa dos direitos civis, políticos e sociais das mulheres que vai ao ar nas rádios Nacional do Alto Solimões, Nacional da Amazônia, Nacional do Rio de Janeiro e Nacional de Brasília.
Ao longo de sua trajetória, a jornalista e militante do movimento feminista teve papel relevante na luta em defesa dos direitos da mulher, como a garantia à licença à maternidade e paternidade e na defesa da criação da Lei Maria da Penha.
A importância da atuação de Mara Régia foi reconhecida em 2005, quando foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz.
Em 2021, a comunicadora ganhou o Troféu Audálio Dantas, que homenageia repórteres que se destacaram na defesa da Democracia, da Justiça, Direito à Informação e Liberdade de Expressão. Ao todo, mais de 50 entidades compõem o prêmio.
Após um breve intervalo, a Pulsar Brasil, agência de notícias da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc Brasil), retoma as atividades numa conversa pujante com Mara Régia sobre memória, feminismo, novas tecnologias e o amor pelo rádio.
Nesta primeira parte, vamos conhecer os primeiros passos da jornalista nas ondas do rádio, a Amazônia na vida de Mara e a indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2005.
A última parte da entrevista com a comunicadora estará disponível no site da Pulsar Brasil a partir do dia 21 de maio.
Pulsar: O programa Viva Maria está prestes a completar 40 anos em 14 de setembro, que é justamente o dia latino-americano da imagem da mulher nos meios de comunicação. Mara, conte para a gente como você foi parar no rádio?
Mara Régia: Eu não fui parar, eu fui parada. Eu sempre gosto de lembrar aquela música Roda Viva do Chico [Buarque] porque é perfeita: “A gente quer ter voz ativa no nosso destino mandar, mas eis que vem a Roda Viva e carrega o destino para lá” e você se depara com situações que você jamais pensou em viver. Desde a infância, com uma avó rádio apaixonada nas novelas, o rádio sempre esteve presente, até porque eu sou de 1951, aos meus cinco, seis anos, a gloriosa Rádio Nacional do Rio de Janeiro vivia seus dramas, novelas e tinha a do “Jerônimo – O Herói do Sertão”.
Minha vó era apaixonada por essa novela, botava os netos todos comendo biscoito marilú na sala para poder ouvir, era como se fosse a oração, quase que como a Ave-Maria que por muito tempo também era um marco na programação das emissoras católicas.
Mas o rádio entra com tudo mesmo na minha vida quando eu venho para Brasília, isso já nos anos 70. A minha primeira formação em Comunicação era Publicidade e Propaganda na Universidade de Brasília (UnB), mas eu estava insatisfeita em só fazer varejo, não era uma coisa que me interessava, eu gostava de fazer teatro, eu tinha uma coisa que até hoje eu não sei decifrar, mas que o rádio contempla, é esse frisson, abrir o microfone e você está no ar, muitas vezes de mãos vazias, é como se você estivesse se jogando num abismo, você nunca sabe o que vai acontecer.
O rádio começa na minha vida pelas portas da Amazônia. Nos anos 70 foi criada essa rádio [Rádio Nacional da Amazônia] porque existia uma preocupação muito grande do governo militar com a entrada das rádios estrangeiras naquela região e nós não tínhamos uma emissora de integração, então nasce a Rádio Nacional da Amazônia como um canhão para falar para toda essa Amazônia Legal que compreende nove estados, vai até o Maranhão. E como eu estava fazendo Jornalismo na UnB, meu amigo Antônio Augusto falou: ” – Olha, tem um negócio que é a sua cara, sai dessa agência de publicidade que você está trabalhando e vai lá, porque você vai amar!” Eu falei: “- Você está doido? Eu nunca estive na Amazônia, não conheço nada e menos ainda de rádio.
Pulsar: Você uma jovem carioca, estudante da UnB, já com uma graduação em Publicidade, fazendo Jornalismo e foi parar na apresentação de um programa que é voltado para a Amazônia Legal, quais as dificuldades que você encontrou nesse início de carreira?
MR: Logo nas primeiras incursões radiofônicas, eu tive a sorte de não pilotar o microfone, eu fiz uma prova para produzir programas, escrever programas para outros locutores falarem. Então, eu era produtora do Clube do Ouvinte e outros tantos programas, eu participava de novelas fazendo voz de criança, porque existia uma produção de programas muito grandes voltados para a Amazônia, porque era preciso encantar aquela população, a nossa presença lá era hegemônica, eu só vim a estrear nos microfones da vida com o Viva Maria em 14 de setembro de 1981.
O programa se desdobra em várias oficinas, numa experiência que se renova toda vez que alguém estuda o significado de um programa voltado para as questões de gênero em plenos anos 80, uma década decisiva para as mulheres do Brasil. Realmente as linhas estavam traçadas, porque o Viva Maria foi uma caixa de ressonância para todas as nossas reivindicações, e na falta de redes sociais, a gente ia de megafone para as ruas, fazia o programa da rodoviária.
O Viva Maria se caracterizou como um programa pioneiro pelo fato dele ter nascido uma década super importante para a cidadania das mulheres do Brasil, na construção dessa Constituição que garantiu pelo menos mais de 60% das nossas reivindicações: creche de zero a seis anos, licença à paternidade e à maternidade. Essas sempre foram as bandeiras do Viva Maria com foco principalmente na questão da violência já que desde aquela época a gente convivia com o recrudescimento da violência contra mulher.


Pulsar: Você ganhou uma indicação ao prêmio Nobel da Paz em 2005. Ao longo dessas quatro décadas qual foi a história que te marcou de uma maneira mais especial?
MR: Eu acho que, sem dúvidas, a cobertura da Constituinte, o enfrentamento, principalmente, dos deputados que se recusavam a ouvir o nosso clamor. Os deputados constituintes achavam que você reivindicar a licença à paternidade era um absurdo, assim como a licença à maternidade maior. A gente chegou a ser insultada pelo então ex-embaixador do Brasil em Londres, Roberto Campos, que era senador e quando a gente reivindicava uma licença à maternidade ele dizia que “mulheres em idade fértil não teriam mais acesso ao mercado de trabalho porque quem é que vai dar uma licença de 120 dias para mulheres que pariram?”
A delegacia da mulher, a DEAM de Brasília foi fruto dessas nossa articulação porque o Viva Maria foi berço para a criação do Fórum de Mulheres do Distrito Federal. Esse Fórum apartidário que mobilizava nos momentos cruciais não só na Constituinte, mas também nas ruas da capital para a gente cobrar essa delegacia, já existia a primeira em São Paulo e a gente já queria a nossa em torno de um crime absurdo que acabou ficando impune: a estudante da UnB, Thaís Mendonça, que foi assassinada pelo então namorado que não se contentava pelo fim do namoro, mas como era filho de general, coronel, acabou conseguindo fugir e mora na Dinamarca hoje. O crime acabou impune. Foi na missa de sétimo dia que levamos a reivindicação para o então governador Aparecido de Oliveira e com isso conquistamos a delegacia e depois o conselho de direitos da mulher do Distrito Federal. Eu mesma, por força do programa, fui indicada ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Pulsar: E Mara, você foi indicada ao prêmio Nobel da Paz em 2005. Como que foi?
MR: O Conselho [Nacional dos Direitos da Mulher] era muito vasto, essas mesmas mulheres acabaram, junto a querida Clara Charf, uma inspiração constante, viúva de Marighella, se articulou para que as mulheres do Brasil tivessem uma representação no projeto Mil Mulheres Pela Paz que era uma intenção das mulheres da Suíça em fazerem jus às mulheres do mundo, porque ao longo de tantos anos, poucas foram as mulheres com indicação ao Nobel da Paz e coube ao Brasil a representação de 52 brasileiras e nessa fase eu já fui indicada ao Nobel pelo meu trabalho junto às mulheres da Amazônia, já que eu já tinha feito alguns trabalhos valorosos junto às parceiras da floresta, inclusive eu fiz a procissão da luz no primeiro Encontro Internacional das Parceiras da Floresta e também fiz um projeto para a Fundação MacArthur Mulher nas ondas do rádio: corpo e alma rompem o silêncio, mas a minha vida inteira o que eu sempre gostei foi estar mobilizando inclusive para a criação da Lei Maria da Penha em 2006, sem falar da eleição de Dilma Rousseff, primeira mulher a assumir a presidência.