Redação
Uma pesquisa inédita sobre a cadeia produtiva da Inteligência Artificial (IA) no Brasil revela que, no país, diferente do imaginário composto por laboratórios, robôs, engenheiros e profissionais especializados, o desenvolvimento de IA depende de uma multidão de trabalhadores precários, que trabalham em casa executando microtrabalhos sub-remunerados.
O relatório “Microtrabalho no Brasil: quem são os trabalhadores por trás da IA” foi realizado por pesquisadores do Laboratório de Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação (Latraps) da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e do DipLab, centro que pesquisa trabalho de plataforma do Instituto Politécnico de Paris.
Segundo os pesquisadores, o microtrabalho se refere a “forma de trabalho online feita em plataformas digitais, que envolve a realização de microtarefas de baixa complexidade, repetitivas, feitas sob demanda, reduzidas a um serviço e pagas por tarefa”.
“Para cada microtarefa realizada, o trabalhador recebe alguns centavos de reais ou dólares. Trata-se de um trabalho informal, disperso globalmente, sem proteções sociais e trabalhistas, porém que cumpre papel central no desenvolvimento tecnológico de nossa sociedade, sobretudo no que diz respeito à cadeia de produção de Inteligência Artificial”, explica o estudo.
De acordo com o levantamento, existem, hoje, mais de 50 plataformas de microtrabalho no Brasil, com finalidades que variam desde o treinamento de dados para o aprendizado de máquinas até a criação de perfis falsos para impulsionamento de mídias sociais. Ainda segundo a pesquisa, a maioria dos brasileiros que trabalha para empresas de IA são jovens, com idade entre 18 e 35 anos (70,6%), mulheres (63,9%) e casados, vivem com parceiros ou possuem união estável (60,8%).
Os três estados brasileiros com maior presença de trabalhadores foram São Paulo (28,8%), Rio de janeiro (12,6%) e Minas Gerais (9,7%).
Perfil
Ao traçar o perfil dos trabalhadores brasileiros envolvidos no mercado de IA, a pesquisa revela que um em cada três não tem outra fonte de renda além das plataformas de microtrabalho e, em geral, ganham três vezes menos do que esperavam receber mensalmente.
Embora as taxas de escolarização dos trabalhadores que participaram do estudo sejam maiores que as médias da população brasileira, o rendimento médio mensal obtido, contando com todas suas fontes de renda, é de R$1.866 – o que não chega a um salário mínimo e meio.
Dos entrevistados, 31,9% informaram que trabalham sete dias por semana nas plataformas. O tempo médio semanal dedicado às microtarefas é de 15 horas e 30 minutos.
Tarefas
Os pesquisadores do Latraps e do Diplab explicam que todo aprendizado de máquina depende da geração, classificação, preparação, verificação e anotação de dados por humanos. Em termos globais, todo esse trabalho costuma ser realizado em plataformas globais de microtarefas como Amazon Mechanical Turk, Appen, LionBridge/Telus, ClickWorker e Microworkers.
De acordo com o relatório, a necessidade de dinheiro, flexibilidade de horários e preferência por trabalhar em casa são as principais motivações que levam os trabalhadores a realizar as microtarefas. Por outro lado, as principais queixas se referem à incerteza, instabilidade, falta de transparência, insegurança, cansaço e falta de interação nas plataformas.
Nas entrevistas realizadas pelos pesquisadores, os trabalhadores também mencionaram que as “piores tarefas” seriam relacionadas à moderação de conteúdos violentos e pornográficos em mídias sociais.
“Em tarefas de moderação de conteúdos violentos e pornográficos em mídias sociais, chama atenção nos relatos dos trabalhadores o custo psicológico de tais atividades e a falta de suporte por parte das plataformas. Revolta, incômodo, impotência e tristeza foram alguns dos sentimentos relatados pelos trabalhadores diante de tais trabalhos”, aponta a pesquisa.
O rol das piores tarefas ainda conta com microtrabalhos caracterizados como “estranhos”. Uma das entrevistadas, por exemplo, relatou ter trabalhado em um projeto voltado ao treinamento de dados de “robôs aspiradores de pó”, para que o software identificasse e evitasse passar por cima de fezes de cachorros e gatos. As microtarefas, nesse sentido, consistiam em tirar “fotos de cocôs de tais animais” em variados ambientes domésticos.
“Alguns centavos de dólares eram pagos para cada foto enviada. A trabalhadora nos relatou que passara dois dias movendo as fezes de seu cachorro e chegou a tirar mais de 250 fotos em diferentes locais de sua residência”, informa o estudo.
Edição: Jaqueline Deister