Na manhã desta terça-feira (24), o Grupo de Trabalho que analisa o Projeto de Lei 2630/20 – o chamado PL das Fake News – na Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública para discutir medidas de aperfeiçoamento da proposta no sentido de conciliar o combate à desinformação com a garantia de direitos fundamentais como a privacidade e a proteção de dados pessoais na internet.
Desde que foi apresentado no Senado, em maio de 2020, o PL tem suscitado uma série de debates entre parlamentares, pesquisadores, movimentos sociais e grupos de ativistas ligados a temas como a liberdade de expressão e os direitos à informação e comunicação.
Dentre os principais pontos analisados pelos participantes, está o artigo 10 do PL, que prevê que aplicativos e serviços de mensageria privada como, por exemplo, Whatsapp, Telegram e Messenger, guardem registros de mensagens dos usuários por até três meses. Na interpretação dos parlamentares e pesquisadores presentes, o rastreamento de mensagens e a retenção preventiva e indiscriminada dos dados pelas plataformas além de não ter eficácia garantida no combate às fake news, pode servir para fragilizar a atuação e tornar ainda mais vulneráveis grupos que vão desde políticos, jornalistas, ativistas até pessoas comuns.
Os participantes também destacaram que a proposta, tal como está apresentada, contraria princípios essenciais da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18) e do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14). Em especial, no caso da LGPD, os princípios de finalidade, adequação e necessidade, que, de maneira resumida, estipulam que o tratamento dos dados coletados dos usuários deve atender a propósitos legítimos, explícitos aos usuários e deve se limitar à realização de suas finalidades, isto é, sem a possibilidade de uso posterior para outros fins.
Estratégias
De acordo com Jacqueline Abreu, pesquisadora e membro da Comissão de Juristas formada pela Câmara para a elaboração da lei de proteção de dados pessoais, a atual legislação brasileira já prevê mecanismos de investigação que se aplicam para apurar delitos que ocorrem ou se aproveitam da internet. O que falta, na opinião dela, é vontade política para aperfeiçoar estes mecanimos através de capacitação técnica e investimento de recursos.
“Nós temos as requisições judiciais de registro de conexão (IP), que o Marco Civil da internet garante desde 2014 e que serve para identificar usuários não imediatamente autenticados com seus nomes reais. E há também a possibilidade de fazer quebra de sigilo de contas, interceptações telemáticas, quebra de sigilo bancário, ou buscas e apreensões em locais que sejam relacionados com o crime. A internet está longe de ser ‘terra de ninguém’”, comentou.
Sobre o PL das Fake News, Abreu entende que a medida, tal como está disposta, é inadequada. Segundo ela, a criação de um novo mecanismo de vigilância massiva traz consigo um alto risco de criminalização de pessoas e grupos que utilizam as ferramentas digitais de maneira legítima, como os movimentos sociais.
Já para o diretor do Instituto Cultura e Democracia, João Brant, a existência de riscos deve ser considerada, mas não pode interromper a busca por soluções aplicáveis contra a desinformação. Segundo, ele: “o problema é que temos riscos eventuais de um lado e danos certos de outro. A existência de riscos não deve nos parar, mas nos provocar positivamente para olhar e entender como mitigar esses riscos e diminuí-los ao máximo”.
Nesse sentido, o pesquisador aposta na possibilidade de aprimoramento do texto do PL, sobretudo em relação ao artigo 10. Segundo ele, uma das principais fragilidades da proposta está em não diferenciar os usos e funcionalidades de comunicação interpessoal, de esfera privada, e a comunicação viral ou de massa. Um dos caminhos, portanto, seria que os aplicativos de mensageria oferecessem aos usuários, através de procedimento técnico, a opção de separar as mensagens privadas das passíveis de encaminhamento:
“Com isso você poderia guardar apenas os dados do primeiro usuário rementente e apenas o quantitativo de usuários alcançados para que possa mensurar o dano no caso de qualquer avaliação de ilícito civil ou penal. Isso empodera o usuário. Faz com que essa definição não esteja no legislador, mas esteja no próprio usuário e na empresa prestadora de serviço. Não se afeta as mensagens interpessoais e não se define uma lista de possíveis usuários alcançados, apenas o quantitativo deles”, explicou.
De forma complementar, a diretora da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Miriam Wimmer, lembrou que a principal questão das fake news não está ligada ao conteúdo enganoso da mensagens, mas à forma como estas mensagens circulam nas redes.
“Nos preocupa a possibilidade de elaboração e disseminação desse conteúdo de maneira direcionada para aquelas pessoas que são mais suscetíveis a serem influenciadas por tais argumentos. Isso se liga ao fenômeno mais amplo de personalização da comunicação e do uso mais intenso de técnicas de marketing comportamental, que são necessariamente acompanhadas da formação de perfis de titulares de dados e do tratamento algorítmico de dados pessoais”, analisou.
Também participaram como convidados da audiência o professor do Instituto de Direito Público, Danilo Doneda, a representante da Data Privacy Brasil e, Bruna Martins dos Santos, e a pesquisadora e membro do Instituto Nacional de Proteção de Dados, Samara Castro. Dentre os parlamentares, além da coordenadora do GT, a deputada Bruna Furlan (PSDB-SP), e o relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), também participaram da audiência os deputados Gustavo Fruet (PDT-PR), Lídice da Mata (PSB-BA) e Ângela Amin (PP-SC).
Edição: Jaqueline Deister